Criança precisa apenas ser criança. É impossível brincar e não aprender alguma coisa.
Raul
Guerreiro, formado na Escola Superior Livre de Pedagogia Waldorf em
Estugarda, na Alemanha, revela que a Pedagogia Waldorf é uma verdadeira
arte de educar e não um método que vem "concorrer" com outras propostas
educativas.
Sara R. Oliveira
Raul Guerreiro dedica-se à divulgação desta pedagogia e da sua estrutura
social escolar, através de palestras audiovisuais para pais, educadores
e estudantes. Nesta entrevista, o responsável faz questão de expor
factos e afastar preconceitos. "As escolas Waldorf não são
estabelecimentos de ensino privado, nem iniciativas de prestação de
serviços educativos em estilo doméstico ou cooperativista", esclarece.
"Como conceito de educação integral com 12 anos de duração, a Pedagogia
Waldorf (PW) reconhece sobretudo as dinâmicas inatas dos alunos para um
processo de autoeducação e de descoberta gradual do mundo".
EDUCARE.PT:
Na pedagogia Waldorf não há avaliação de desempenho com notação
numérica. De que forma são avaliados e apreciados os progressos dos
alunos?
Raul Guerreiro: No final do ano os alunos recebem um
"Boletim Waldorf", que é uma coleção de descrições redigidas por todos
os professores, expondo de maneira objetiva a metamorfose vivenciada
pelas crianças. Não há avaliações "boas ou más" e a ênfase vai para o
elogio e para o reconhecimento dos esforços empreendidos pelos alunos.
Nos primeiros anos esses documentos são um precioso auxiliar para os
pais e mais tarde tornam-se, para os próprios alunos, um espelho
promotor da autoconfiança.
E: Nas escolas Waldorf não existe a
repetição de anos. Defende-se que os chumbos contrariam a própria
condição humana. Não há diferenças entre os bons e os maus alunos?
RG:
Precisamente, a existência de diferentes estágios de amadurecimento é
considerada na PW como uma coisa salutar, pois expressa a diversidade da
condição humana, dando ainda oportunidade a uma solidariedade entre
camaradas de classe, o que seria interrompido por qualquer processo
seletivo de "chumbos".
"A
PW lida com uma trilogia de forças anímicas presentes em estado latente
em cada ser humano desde o nascimento: pensamento-sentimento-vontade." |
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E: Privilegia-se o campo sensorial. Qual a importância da componente cognitiva?
RG:
O campo sensorial é mais realçado apenas nos anos do jardim de infância
e primeiras classes. Evita-se aí estimular um esforço intelectualista
precoce, que resultaria danoso para a formação harmónica da
personalidade. A PW lida com uma trilogia de forças anímicas presentes
em estado latente em cada ser humano desde o nascimento:
pensamento-sentimento-vontade. A esfera do pensamento vai sendo
reforçada paulatinamente, mas sempre em equilíbrio com as demais forças,
e acompanhada por um estímulo da imaginação.
E: Quais as principais diferenças entre esta metodologia e a utilizada no ensino regular?
RG:
Este é um tema gigante, mas vou tentar um resumo: (a) cada escola é
totalmente independente, suportada por uma associação de fim
não-lucrativo. A associação possui uma diretoria, mas ela é responsável
apenas pelos atos financeiros e jurídicos; (b) a escola propriamente não
tem nenhum diretor, pois são os professores que exercem em conjunto a
função diretiva, com absoluta autonomia para o domínio pedagógico. Tudo o
que não diz respeito à pedagogia está entregue a órgãos escolares onde
pais e professores atuam em parceria; (c) os anos de jardim de infância
são uma delicada fase de alimentação moral-espiritual que irá marcar as
personalidades para o resto da vida. Cultiva-se aí uma harmonização das
almas infantis, sem se aplicarem medidas corretivas ou tentar preparar
as crianças para a fase escolar; (d) todos os alunos aprendem duas
línguas estrangeiras desde o primeiro ano. O chamado "professor de
classe", que acompanha cada classe durante os primeiros oito anos, tem a
seu cargo o currículo Waldorf inicial (Matemática, Português, História,
Geografia, Ciências Naturais, etc). Outros professores encarregam-se
das disciplinas individuais; (e) não se utilizam computadores e não há
livros escolares durante os primeiros anos, pois são os próprios alunos
que elaboram tudo em cadernos próprios criados com arte, imaginação e
individualidade; (f) no secundário são introduzidos temas mais
complexos, mas preserva-se um equilíbrio entre a crescente liberdade de
atuação e a criatividade social; (g) muitas escolas preparam para a
admissão ao ensino superior. (h) nas escolas Waldorf não se ensina
Antroposofia, e não há "cruzamentos" com outras práticas, yogas,
meditações ou quaisquer inspirações orientais; (i) o ensino de religião é
parte integral do currículo e para tal há sempre professores
contratados de acordo com as crenças de cada família. Quando aparecem
pais que estão convencidos dos benefícios da PW, mas declaram "não ter
religião", eles não são dogmaticamente rejeitados, mas devem aceitar que
os seus filhos sejam incluídos nas aulas de Religião Livre do currículo
Waldorf, as quais estão baseadas nos princípios morais dos evangelhos
cristãos.
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"A essência da PW pode ser expressa como uma arte de facilitar o desabrochar de competências inatas únicas." |
E:
Estimular a criatividade, promover a independência através da arte e do
contacto com a natureza, ajudar os alunos a expressar competências
inatas e únicas. Como é feito este trabalho?
RG: O tema é de
enormes proporções, mas para fornecer uma resposta abreviada posso
esboçar alguns aspetos capitais. A essência da PW pode ser expressa como
uma arte de facilitar o desabrochar de competências inatas únicas. Para
tal, o principal é saber reconhecer e afastar os empecilhos que se
apresentam. Cultiva-se uma permanente reverência pedagógica por cada
criança, como autêntica representante da humanidade e do princípio
superior presente na sua constituição tríplice:
material-anímica-espiritual. Os docentes dedicam-se eles próprios a uma
permanente autoeducação.
E: Acredita que a criança é capaz de se educar a si mesma, desde que criadas as condições para que isso aconteça?
RG:
A PW não se dedica a fornecer conhecimentos, como se as crianças fossem
inicialmente inocentes arcas vazias. O essencial é reconhecer nos
alunos a presença de todas as dinâmicas inatas necessárias para um
processo de autoeducação e gradual descoberta de si próprios e do mundo.
É aqui que professores e pais intervêm colaborativamente, oferecendo
ambientes propícios para uma expansão biográfica autónoma, segundo o
destino interior de cada criança. A totalidade do ensino Waldorf é de
carácter imaginativo e artístico-criativo, cultivando-se competências
para uma aprendizagem contínua durante toda a vida.
E: Depois
de 12 anos numa escola Waldorf, os alunos estão preparados para
enfrentar o ensino superior, onde há avaliações e chumbos?
RG: O
chamado "sucesso académico" ou "sucesso profissional" exige hoje
sobretudo qualidades de criatividade, autoconsciência, flexibilidade
cognitiva, adaptabilidade a transformações críticas, e capacidade para
manter intacta a própria identidade. Tudo isto é cultivado logo desde os
primeiros dias no jardim de infância Waldorf. Recentes estudos na
Europa e na América comprovaram inclusive que os ex-alunos Waldorf
alcançam um sucesso fora do comum e um máximo de competências para as
ocupações assumidas na vida adulta.
"A
totalidade do ensino Waldorf é de carácter imaginativo e
artístico-criativo, cultivando-se competências para uma aprendizagem
contínua durante toda a vida." |
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E: Os professores têm uma preparação especializada para ensinar numa escola Waldorf?
RG:
Os docentes são formados em escolas superiores ou centros de formação
de Pedagogia Waldorf. Não se exige qualquer pré-formação específica, e o
treinamento pode durar dois ou três anos em regime integral, havendo
outras alternativas para estudos parcelados. Há muitos centros de
formação em todo o mundo (o mais próximo está em Madrid) e em Lisboa
existe um curso introdutório.
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"A
direção coletiva dos professores Waldorf, junto com os demais órgãos da
escola, promove uma total transparência entre professores, pais,
familiares e amigos. " |
E: Uma
direção coletiva, um parlamento escolar. É fácil gerir um
estabelecimento de ensino sem um patamar hierárquico, em que todos estão
ao mesmo nível?
RG: Nas escolas Waldorf não existe qualquer
utopia do tipo "todos iguais a todos". Mas a ausência de uma pirâmide
hierárquica constitui, precisamente no mundo da educação, um princípio
democrático direcionado à paz e ao futuro, não significando menos
eficácia no trabalho. A direção coletiva dos professores Waldorf, junto
com os demais órgãos da escola, promove uma total transparência entre
professores, pais, familiares e amigos. Isto resulta mais criativo e
recompensador para todos e, em última análise, mais efetivo para a
educação pretendida.
E: Qual deve ser o papel dos pais no processo educativo?
RG: Os
pais que optam pela PW fazem-no por autêntica convicção e conscientes
dos direitos humanos das crianças. Eles são cooperadores imprescindíveis
em todo o projeto, assumindo um compromisso com essa pedagogia e o seu
modelo comunitário-escolar. Durante muitos encontros regulares entre
pais e professores, os acontecimentos a nível familiar ficam
transparentes para a escola e vice-versa. Além disso, as numerosas
festas e apresentações ao longo do ano reforçam o espírito de
comparticipação.
E: Tem falado num "fantasma opressor do moderno mundo escolar". Na sua opinião, o sistema de ensino está demasiado formatado?
RG:
O último século, cada vez mais dominado por uma compreensão
materialista-cientifista do ser humano, veio condicionar a tal
"demasiada formatação". Sem dúvida já há hoje, inclusive na nova pasta
da educação, corajosos impulsos de renovação humanística, mas surgiu por
último a crença tecnomisticista (aliás já cientificamente desmascarada e
rejeitada na América e na Europa) dos meios eletrónicos aplicados à
educação básica. Essa absurda medida só pode ser classificada como um
ato de pobreza espiritual, pois está esvaziada dos impulsos morais
necessários para promover os princípios de liberdade, paz e comunhão na
nova sociedade emergente. Alunos vitimados desde cedo por essa
deformação robótica sofrem de uma crescente insensibilização moral e um
dramático desencontro consigo próprios. O pavoroso quadro de
brutalidades psíquicas e físicas surgidas nas escolas, mais os fenómenos
de bullying, desistências e depressões (inclusive entre professores),
está aí visível para todos. A última resposta oficial a tudo isto foi a
criação de uma nova lei de crime público, com penas de um a cinco anos
de prisão, para violência nas escolas.
"A classe docente portuguesa necessitava sobretudo da oportunidade para uma profunda reflexão sobre reformas pedagógicas." |
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E: Os professores portugueses estão a ser avaliados. Uma medida sensata para promover a excelência da classe docente?
RG:
A essência dramática da questão é que semelhantes avaliações são
insufladas precisamente por aquele doentio modelo dos chumbos.
Pretende-se passar por um crivo os trabalhadores imediatos do ensino,
enquanto que a respetiva estrutura estatal arcaica e autoritária
permanece intocada. A classe docente portuguesa necessitava sobretudo da
oportunidade para uma profunda reflexão sobre reformas pedagógicas
(algo como um novo pacífico 25 de abril para as mentalidades).
E:
No sistema de ensino português, a avaliação de desempenho, a
precariedade dos professores contratados, a falta de psicólogos nas
escolas, algumas regras no Estatuto do Aluno têm provocado alguma
contestação. Em seu entender, as políticas educativas em Portugal
caminham num bom sentido?
RG: A educação das novas gerações (algo
que equivale ao próprio futuro da humanidade) é por natureza própria
incompatível com aspirações políticas, astúcias personalistas, programas
partidários ou eleições. Como prolongamento de um conservantismo agora
semiafogado na experiência da tecnificação em massa, as nossas políticas
educativas estão cada vez mais confrontadas com um incompreensível novo
mundo (e isto em simultâneo com o atual abismo da bancarrota financeira
do país). Toda uma arquitetura secular feita de orgulhos nacionalistas e
raciais, convicções de classe, avanços científicos e jogatinas
económicas internacionais está agora a ser sacudida pela base, como que
lavada por uma benemérita onda tsunâmica global. A nova ordem social
emergente grita muito mais por uma renovação humanista da educação do
que por planos de defesa contra armas nucleares ou ataques terroristas.
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"Portugal é a última nação da Europa Ocidental sem uma presença socio-cultural da Pedagogia Waldorf. " |
E:
Portugal tem poucas escolas Waldorf. Desinteresse, falta de
investimento, pouca abertura para uma metodologia diferente, resistência
a um programa diferente do ensino regular? O que se passa?
RG: A
Pedagogia Waldorf, ou Arte de Educar de Rudolf Steiner, é uma renovação
conceptual alargada por uma verdadeira antropologia
científico-espiritual do Homem e para o Homem. Ela foi reconhecida pela
UNESCO e está hoje presente no mundo como uma realidade colaborante no
esforço de humanização e aprofundamento espiritual da educação. Portugal
é a última nação da Europa Ocidental sem uma presença socio-cultural da
Pedagogia Waldorf. Para além da dificuldade típica de impulsos
pioneiros, existe a referida política oficial conservativa e asfixiante,
que bloqueia uma reforma legislativa que permita a existência de
escolas livres, e sobretudo emancipadas da mórbida prática dos exames de
"equivalência" impostos a crianças cujos pais optaram legalmente por
outra linha educacional.
No Algarve, no município da Vila do
Bispo, um corajoso grupo de mães, pais e professores mantém hoje a
"Escola Livre do Algarve - A Oliveira" como primeira escola primária
Waldorf regular em Portugal.
As escolhas de Raul Guerreiro:
As escolhas de Raul Guerreiro:
Citação:
"O
nosso mais elevado objetivo deve ser a promoção do desenvolvimento de
seres humanos livres, aptos a dar por si próprios sentido e direção às
suas vidas". (Rudolf Steiner)
Livro:
"O desenvolvimento saudável do ser humano" (em português) por Rudolf Steiner.
Música:
Guitarradas de Carlos Paredes, ou o oratório "A Criação" de Haydn.
Autor:
Gudrun Burkhard, uma genial médica que escreve (em português) sobre imensas coisas que ultrapassam a simples medicina.
Político:
Mahatma Gandhi, como exemplo de uma cultura política que rejeita qualquer forma de violência.
Viagem:
A
viagem mais fascinante que já fiz foi uma visita a um jardim de
infância Waldorf em Cabinda, África. A viagem que ainda não fiz: navegar
à volta do globo na trilha exata de Fernão de Magalhães.
Memória de infância:
A
atmosfera de amoroso calor educativo na presença do meu avô professor
João Cândido de Carvalho (cofundador da Liga de Defesa dos Direitos da
Criança, posteriormente extinta pela ditadura, e pioneiro da inauguração
da República e da implantação dos jardins de infância em Portugal,
inspirados em Froebel).
Sonho por realizar:
Creio
que "sonhos por realizar" têm a tendência para ficar no ar, ou
assumirem feições excessivamente personalistas. Quem não se entrega ao
comodismo da apatia, e já hoje toma os seus ideais em mãos buscando uma
cooperação com outros, está imediatamente a trabalhar para a realização
dos seus sonhos.
Fonte: http://www.educare.pt/noticias/noticia/ver/?id=14262&langid=1