Motivos de pais para educação familiar vão de insatisfação com a escola e vontade de ficar mais próximo aos filhos; especialistas divergem sobre prática
Uma
nova batalha vem sendo travada dentro e especialmente fora das salas de
aula do Brasil. A polêmica gira em torno da chamada educação
domiciliar, em que famílias optam por ensinar seus filhos na própria
casa e não na escola.
De um lado da trincheira estão pais que defendem o
direito de eles próprios - e não o Estado - decidirem como e onde os
filhos serão educados. Ao se dizerem insatisfeitos com o sistema
educacional do País, eles mostram aprovações dos filhos em exames como o
Enem para corroborar a eficácia da educação domiciliar.
No outro lado da disputa estão o governo e alguns
juristas alegando que tirar uma criança da escola é ilegal, além de
alguns educadores, que criticam a proposta, especialmente com argumento
de que essa prática colocaria as crianças em uma bolha.
Mais sedimentado em países como os Estados Unidos, o
homeschooling (como também é conhecido pela expressão em inglês) vem
ganhando fôlego no Brasil. Segundo a Aned (Associação Nacional de
Educação Domiciliar), há mil famílias associadas no grupo. Mas Ricardo
Iene, cofundador do órgão, calcula que, pela quantidade de e-mails que
recebe, sejam mais de 2 mil famílias educando seus filhos em casa no
Brasil.
O movimento também está conquistando espaço na esfera
política. No próximo dia 12, haverá uma audiência pública em Brasília
para discutir o tema, na Comissão de Educação e Cultura da Câmara. Na
pauta, estará também o Projeto de Lei (PL) do deputado Lincoln Portela
(PR-MG), que autoriza o ensino domiciliar.
Advogados da Aned veem na própria Constituição brechas
que defendem o direito da família de educar seus filhos mas a associação
acredita que uma lei específica daria mais segurança aos pais que optam
por esta modalidade de ensino.
Por que em casa?
"Quando meu filho
tinha 7 anos, um garoto da escola, que tinha 10 anos, batia nele e o
perseguia por causa do nosso sotaque baiano", conta Ricardo Iene,
cofundador da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), que é
natural da Bahia, mas mora em Belo Horizonte (MG) há cinco anos. "Também
havia um garoto que ficava assediando milha filha. Fui várias vezes na
escola, reclamar, conversar, tentar resolver esses problemas. Mas nunca
adiantou."
O bullying foi um dos motivos que, há três anos,
influenciou Ricardo a tirar da escola, Guilherme, de 13 anos, e Lorena,
de 15 anos. Mas certamente não foi a única motivação. Tanto para o
publicitário que vive em BH como para outros pais ouvidos pela BBC, é
sempre um conjunto de fatores que o impulsionam a tomar essa decisão.
Mas um deles parece estar sempre presente: o desejo de estar mais
envolvidos e presentes na criação dos filhos.
"Vemos crianças hoje em dia que entram na escola às 7 da
manhã e ficam até bem depois das 17h ou 18h, porque elas ficam fazem
balé, natação e várias outras atividades. Além da agenda cheia como a de
um adulto dessas crianças, mal sobra tempo para o convívio familiar",
diz M.L.C, mãe de 4 filhos, todos em homeschool, que não quis se
identificar por temor de ser denunciada.
Ricardo também sentia falta do envolvimento de outros
pais quando frequentava as reuniões na escola dos filhos, tanto das
instituições públicas como das particulares. "Muitos pais nem
participavam. E aí, ficava ainda mais difícil melhorar a situação da
escola."
Outro ponto que impulsionou o publicitário e outras
famílias a optarem pelo homeschool é o fato de não concordarem com
alguns valores morais passados na escola. Ricardo diz que ele e outros
associados da Aned costumam se incomodar especialmente com a abordagem
de temas como sexo e homossexualidade.
Vivendo em uma bolha?
Mas se do
lado dos pais praticantes da educação domiciliar só se ouve elogios do
tipo "agora meu filho aprende e não apenas decora", do lado dos
educadores, o que se vem são dúvidas e críticas. Muitas críticas.
"Se os pais estão insatisfeitos com a escola, há muitas
outras alternativas antes de se colocar o filho em uma bolha", afirma a
educadora Silvia Colello, professora de Psicologia da Educação e outras
disciplinas da Faculdade de Educação da USP.
"Além do mais, qual a lição subliminar que se está
passando ao filho ao tirá-lo da escola? Certamente algo como, diante de
um problema, basta resolver apenas a minha parte, salvar a própria pele,
e o resto que se dane."
Para a educadora, os pais também erram ao acreditarem
que com educação domiciliar estão protegendo seus filhos, por estarem em
um ambiente amigável, sem bullying, sem competição. "Infelizmente, a
vida não é assim. Mais cedo ou mais tarde, essa criança vai se deparar
com a realidade. Vai começar em um emprego, por exemplo, onde há
competição, bullying, tudo isso."
Silvia também cita a importância da escola não apenas
pelo conteúdo, mas também pela convivência que se tem com outras pessoas
e o aprendizado que se tem com isso, seja na hora de se aprender a
lidar com o outro, de aprender com os colegas, comparar seus trabalhos e
até mesmo de lidar com brigas e desentendimentos. "Toda essa vivência é
tão importante quanto português, matemática ou história", diz a
educadora.
Os homeschoolers, no entanto, dizem que as crianças não
vivem em uma bolha e têm essa convivência ao encontrarem amigos no
clube, na praça, na igreja ou na casa deles e ao frequentarem
atividades, como natação, fotografia e judô.
"Acho contraditório", afirma a educadora. "Se o problema é a perseguição na escola, não tem bullying na aula de natação?"
'Luta de todos'
A educadora Maria
Celi Chaves Vasconcelos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) aponta um outro problema na prática da educação domiciliar no
Brasil de hoje: a falta de fiscalização do Estado. Algo que foi
reforçado durante a pesquisa para seu pós-doutorado, sobre o
homeschooling e suas implicações hoje tanto no Brasil como em Portugal.
"Diferentemente dos portugueses, que já conseguiram
colocar todas as suas crianças na escola, nós ainda estamos caminhando
para isso. Então, no momento, seria difícil conciliar sistemas
diferentes de educação", diz.
"Como o governo conseguiria fiscalizar as crianças em
educação domiciliar se ainda não faz isso de maneira satisfatória nem
com as próprias escolas públicas?" Segundo ela, em Portugal, as crianças
em homeschools são registradas nós órgãos regionais e as autoridades
fazem um acompanhamento da educação delas.
Ela vê aspectos positivos no método, como ensinamentos
passados não apenas em salas de aula, mas também em locais como museus e
planetários. E acredita que escolha dos pais em relação à educação dos
filhos seja algo inevitável no futuro, quando o Brasil atingir suas
metas educacionais.
Enquanto isso, Silvia, a educadora da USP, também
defende que essa opção é prejudicial ao projeto de educação do País como
um todo.
"É claro que a ensino no Brasil ainda está bem aquém do
esperado, mas é preciso se ter uma frente de luta e não de alienação. E
essa luta não é só do Estado, mas também das escolas, dos pais, dos
professores e de toda a sociedade."
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