APRESENTAÇÃO
Todo dia, cerca de 2,3 milhões de estudantes que vivem no
campo são
transportados para as cidades rumo às suas escolas. Apenas
33%, segundo o
Censo Escolar 2002, estudam em escolas localizadas na zona
rural. Muitas
dessas escolas estão mal aparelhadas – aproximadamente 44
mil delas nem
sequer possuem energia elétrica – e o desempenho de seus
alunos tem se revelado
inferior aos que estudam na zona urbana, segundo as últimas
avaliações feitas pelo
Ministério da Educação. O fato de o Brasil ser um país
imenso, com 22% de sua
população infanto-juvenil vivendo no campo, torna ainda mais
necessária a oferta
de ensino público de qualidade além dos limites das cidades,
principalmente na
Educação Infantil, pois 67% das crianças brasileiras entre
zero e seis anos se
encontram fora da escola. No campo, a pouca oferta piora
esse quadro de exclusão.
Temos, portanto, um problema a enfrentar.
A Fazenda Escola Fundamar ganhou o Prêmio Criança 2002 da
Fundação
Abrinq, na categoria Educação Infantil, por apresentar uma
proposta que enfrenta
simultaneamente dois dos maiores desafios da educação no
campo: qualidade e
garantia de transporte para a população atendida.
Criada pelos proprietários da Fazenda Santa Rita, no sul de
Minas Gerais, com
apoio dos municípios de Machado e Paraguaçu e da Secretaria
de Estado da
Educação, a Fundamar construiu, ao longo de duas décadas de
existência, uma
respeitável consistência pedagógica. O papel destacado da
memória, a valorização
da vida comunitária e dos saberes próprios daqueles que
vivem na região, a
participação ativa dos pais na aprendizagem de seus filhos,
a oferta de período
integral com cinco refeições diárias e oficinas de arte, o
incentivo à criação do
material didático pelos próprios alunos e uma organização
curricular
contextualizada fazem dessa experiência um estudo de caso a
ser analisado,
debatido e aplicado. Sempre com as necessárias adaptações a
cada contexto, como
recomendam as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do
Campo, editadas pelo Ministério da Educação:“a identidade da
escola do campo é
definida pela sua vinculação às questões inerentes a sua
realidade”. Ou seja, a
cada campo, uma escola que faça sentido a quem nele vive.
Nossa intenção ao publicarmos esta experiência é que mil
outras escolas como
a Fundamar proliferem pelo país, como boas plantações. E que deem seus frutos na
forma de cidadãos conscientes e orgulhosos de serem o que
são: homens que
vivem no campo e dele extraem sustento e orgulho.
Boa leitura.
Rubens Naves
Diretor-presidente da Fundação Abrinq
pelos Direitos da Criança e do Adolescente
“É notável a mudança nas crianças. Muitas chegam
desnutridas, pouco sociáveis, arredias. Algumas têm até o
olhar
triste. Mas, passados alguns dias, elas começam a brincar,
correr,
pular... ficam amigas umas das outras. Enfim, se tornam
crianças
felizes. Com isso, ganhamos todos. A criança, um ambiente
saudável para seu desenvolvimento. A família, tranquilidade
e
tempo para trabalhar. E nós, educadores, a gratificação de
poder
contribuir de alguma forma para o desenvolvimento dessas
crianças.” (Janete de Souza Rocha, professora de Educação Infantil
da Escola Estadual Fundamar)
INTRODUÇÃO
Criada pela Fundação 18 de Março, em 1984, a Escola Estadual
Fundamar atua
no município rural de Paraguaçu, em convênio com a
Secretaria de Educação de
Minas Gerais. Desde o início, a escola se ergueu olhando nos
olhos da população
local, reconhecendo-a como protagonista de uma história
rural com tempo, espaço
e enredo próprios – muitas vezes desprezados pelos modelos
urbanos. Ano a ano,
construiu uma proposta pedagógica inovadora, baseada na
investigação e
construção da memória, da identidade e do conhecimento.
Dentro e fora da sala de
aula, a criança encontra a oportunidade de viver uma
infância plena, com tempo e
espaço para brincar, fazer amigos, explorar o mundo físico e
imaginário e buscar
diferentes formas de expressão.
Para que o projeto pedagógico se concretize de fato, há um
investimento
contínuo na formação de seus profissionais, adaptação do
espaço físico e
elaboração de material escolar adequado ao contexto. Desde
cedo, a Fundamar
também compreendeu a importância de promover a proteção
integral da criança,
envolvendo a família, a comunidade e o poder público na
garantia dos direitos
básicos da infância, como transporte, alimentação e saúde.
No decorrer de 2003, essa prática pedagógica tornou-se
matéria-prima de um
cuidadoso processo de sistematização, que resultou nesta
publicação. A Escola
Estadual Fundamar participou, assim, de um novo desafio
assumido pela Fundação
Abrinq a partir do Prêmio Criança 2002: sistematizar as
experiências vencedoras
para que sejam disseminadas pelo país ou, ainda, inspirem
mudanças nas políticas
públicas.
A pedagoga com especialização em psicologia social Maria
Lúcia Gulassa
visitou o local, observou espaços e rotinas, consultou os
registros existentes e
realizou entrevistas individuais e coletivas com membros da
equipe.Também foram
organizados encontros com os educadores, monitores,
supervisores, mães e
assistentes sociais.
No processo de sistematização dessa experiência pedagógica,
o grupo pôde
refletir sobre suas práticas, definir conceitos e organizar
saberes a fim de melhorar,
potencializar, compartilhar e disponibilizar a experiência
para que outros possam
aprender com ela. A partir de temas como “Quem é a população
rural?”,“Qual é o
futuro dessa população?”,“Qual é a importância da creche no
campo?”,“Quem é o
ser humano que queremos formar?”, o grupo teve a oportunidade
de expressar seus
pensamentos, confrontar ideias, aprofundar reflexões e
produzir textos coletivos
como registro desta trajetória.
Antes de enfocar especificamente o projeto de Educação
Infantil da Escola
Estadual Fundamar, é importante falarmos sobre a origem e o
desenvolvimento da
proposta pedagógica que norteia a iniciativa.Também merece
atenção o contexto
cultural e social das famílias atendidas. Ao ver, ouvir e
sentir as crianças e os
educadores, o impacto deste trabalho se revela e contagia. E
esse contágio nada
mais é que o primeiro passo para a esperada disseminação
dessa experiência bem sucedida
de Educação Infantil no campo, uma etapa desafiadora e
decisiva para o
bom desenvolvimento da criança.
A Escola Estadual Fundamar é um projeto de educação
instalado no município
de Paraguaçu, que atende também crianças de Machado – ambas
áreas cafeeiras
do Sul de Minas Gerais. Criada em 1984, a escola
conveniou-se, cinco anos depois,
à Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. Hoje
atende cerca de 500
crianças, da Educação Infantil ao Ensino Fundamental. São
meninos e meninas
moradoras da zona rural e periferia das duas cidades, com
idades entre 18 meses e
16 anos.
Mesmo com defasagem idade/série, nenhuma criança que vive no
campo e
solicita matrícula é rejeitada pela escola. Afinal, a
Fundamar nasceu justamente
para garantir o acesso dessas crianças à educação. Muitas
delas não estudavam
porque não tinham como chegar até a cidade mais
próxima.Também houve uma
especial atenção no sentido de criar uma escola que
atendesse e respeitasse a
cultura do campo, sem reproduzir preconceitos ou currículos
esvaziados de sentido
para aquele grupo. Comumente, depois de uma empoeirada
caminhada, a criança
moradora do campo que chega à escola da cidade é rejeitada
pelos colegas por
ser diferente,“da roça”. Sem ter as mesmas bases culturais
previstas no currículo,
também não encontra seu lugar na rotina pedagógica. Acaba,
então, sendo excluída
da escola, levando consigo a sensação de que é incapaz ou de
que não faz parte
do grupo.
Atenta a essa realidade, a Fundamar se propôs a fazer um
atendimento
baseado na valorização e no fortalecimento da identidade da
comunidade local.
Construiu um projeto pedagógico próprio e tornou-se
referência na região. Cuidados
e protegidos, seus alunos têm a oportunidade de vivenciar um
rico contexto de
formação cultural e aprendizagem participativa e instigante.
A seguir, algumas características marcantes do projeto
pedagógico da escola:
Atendimento integral
Contrariando a mentalidade de que a população que vive no
campo prefere
seus filhos no trabalho a tê-los na escola, os alunos da
Fundamar passam oito
horas diárias na escola. Além da escolarização formal, são
oferecidas oficinas
culturais, como artesanato em fiação, tecelagem, bordado,
tricô, cerâmica, cestaria
em palha, horta, marcenaria, aulas de música, biblioteca,
recreação, datilografia e
informática. A escola também garante transporte para todas
as crianças e
professores, cinco refeições diárias e encaminhamento médico
e odontológico.
Ponto de encontro
Segundo a supervisora das oficinas e assistente social da
Fundamar,Maria
Lúcia Prado Costa, o maior atrativo da escola, para as
crianças, não é o transporte
ou a alimentação.“É o interesse em se encontrar”, afirma. A
instituição tornou-se
ponto de encontro, um verdadeiro polo cultural no meio da
roça.
A PROPOSTA DE TRABALHO
Convívio afetuoso
Os professores dizem gostar muito de trabalhar na escola.
Afirmam que é
melhor do que trabalhar na cidade ou em qualquer outro
lugar, com qualquer outra
população.Mas não lhes parece fácil explicar o porquê. Ficam
se perguntando o
que há de tão especial. A primeira razão que surge é o jeito
de ser dos alunos,
“receptivos, carinhosos, gentis”. Todos valorizam e respeitam
os professores. Desde
bem pequenos, são cooperativos e companheiros entre si.
Acolhimento e troca
Outro ingrediente importante do ambiente escolar citado
pelos professores é a
postura dos próprios adultos. Os mestres descrevem um clima
de acolhimento,
potencializando a oportunidade de troca e aprendizagem. Para
os profissionais da
educação, essa atitude contribui para que a escola seja
realmente “construtivista”,
pois permite que crianças e professores estejam mais livres
para construir e
reconstruir seus conhecimentos de forma significativa.
Metodologia investigativa
A metodologia investigativa também se revela como
característica marcante da
escola. Continuamente, a equipe se propõe a conhecer as
crianças, suas famílias, as
características da população rural e as formas como
constroem seu pensamento.
Prevalece a concepção de que o conhecimento não está pronto
ou acabado,
mas em constante movimento, sendo construído por todos –
supervisores,
professores e alunos. Produzindo textos, elaborando
mapas,maquetes ou jogos,
estudando as mudanças em si próprios e no contexto, todos
produzem saberes.
“Quem somos?”“De onde viemos?”“Quais são as nossas
dificuldades?”“O que
queremos?”“Como é nosso espaço?” São perguntas, entre tantas
outras,
constantemente investigadas, discutidas, respondidas e
registradas pelas turmas.
Tesouro da memória
Em busca de um sentido verdadeiro para a educação de
crianças do meio rural,
a Fundamar descobriu a necessidade e a riqueza de trabalhar
com as noções de
pertencimento, identidade, protagonismo e possibilidade de
ser. Esses temas foram
assumidos como principal metodologia do trabalho, por meio
da inserção da criança
no tempo e no espaço. A preservação da memória e da história
é compreendida
como um processo de construção de identidade e pertencimento
sociocultural,
intimamente ligado às características do espaço em que se
vive.
Produção de conhecimento
Todos os alunos e professores são envolvidos na produção
permanente de
conhecimento. Em vez de usar o material didático
convencional, por exemplo,
tornam-se autores dos Cadernos de Estudos Sociais, que já
são referência nas
escolas da região.
“Gostaria que nossos meninos e meninas saíssem da escola com
um sentimento de alegria
pela vida, acreditando que o empenho em construir o mundo
vale a pena. E mesmo quando as
coisas se tornarem difíceis, as portas se fecharem, às vezes
injustamente, que eles se
apeguem ao sentimento de que têm sorte na vida: afinal
tiveram uma escola que era a mais
bacana do pedaço.”
Maria Lúcia Prado Costa, assistente social e coordenadora
das oficinas
Em paralelo, para permitir o livre acesso ao conhecimento
acumulado, a escola
criou uma biblioteca com variados títulos de Literatura, Arte
e História. Além disso,
mantém um banco de dados constantemente alimentado por todos
os participantes
da escola e da comunidade, para que escrevam, desenhem ou
fotografem.Tal banco
constitui-se, assim, em um acervo inédito e valioso sobre a
vida e a cultura da região.
ESCOLA RURAL OU DO CAMPO?
No debate atual sobre educação para a população rural, está
implícita a
necessidade de se reconstruir no imaginário coletivo uma
nova visão do
campo, pois ainda é dominante a concepção do campo como um
lugar de
atraso, prosaico, inferior à modernidade da cidade, sem
futuro.
Nesse sentido, alguns teóricos da educação defendem o uso da
expressão
“campo” em substituição ao “rural”, com o sentido de
concebê-lo como um
espaço de vida e resistência, que contempla o modus vivendi
do homem do
campo, respeitando as diferenças e especificidades de cada
povo que nele
habita, um ethos engendrado nas relações interpessoais desse
contexto.Nas
palavras de Bernardo Mançano Fernandes, o conceito “campo”
expressa um
“espaço social com vida, identidade cultural própria e
práticas compartilhadas
por aqueles que a vivem”, enquanto o “rural associa-se ao
espaço territorial,
demarcador de área”.
O conceito de “campo” foi inicialmente introduzido pelos
movimentos
sociais do campo e vem sendo incorporado também por alguns
órgãos
governamentais envolvidos na discussão sobre as diretrizes
para uma
educação do campo. Com isso,mais do que mudança de
terminologia,
pretende-se reconhecer os valores e saberes próprios dessa
população, que
sempre viveu à margem de seus direitos. Como estratégia de
inclusão social, a
educação do campo também deve ser pensada articulada a um
projeto de
desenvolvimento sustentável para quem nele vive. (Marcia Regina Andrade, doutora em Ciências Sociais aplicadas
à Educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp)
A ESCOLA NO TEMPO
Atual coordenadora da Escola Fundamar, a fonoaudióloga
Creusa Prado
Ornellas faz parte da história da instituição desde quando
ela era apenas uma
ideia.“Tudo começou porque pessoas se encontraram e se
arriscaram. De diferentes
maneiras, não tiveram medo de ser pioneiras, generosas e
solidárias”, lembra.
Proprietária de uma das fazendas da região, a Fazenda Santa
Rita, Dona
Creusa percebeu que as crianças do local e arredores não frequentavam a escola
da cidade por falta de transporte. Em um primeiro momento,
junto com os demais
proprietários da fazenda, decidiu providenciar a
condução.Mas o grupo constatou
que, mesmo assim, o índice de evasão escolar continuava
alto. Começaram, então,
a pensar na criação de uma escola que acolhesse melhor às
especificidades da
criança do campo.
Em 1978, o cunhado de Dona Creusa e sócio na fazenda, o
advogado Túlio
Vieira da Costa, havia criado a Fundação 18 de Março, com o
objetivo de dar apoio
jurídico à população local, que não tinha acesso à Justiça.
Contagiado pela
preocupação com a educação das crianças, ele concedeu
autorização em
comodato para que uma área das terras fosse utilizada no
desenvolvimento de
atividades educativas. Posteriormente, ocorreu a doação
definitiva da área.
Primeiros anos
O entusiasmo foi crescendo, e Dona Creusa começou a elaborar
um projeto de
educação no campo. Informada de que não poderia desenvolver
uma escola sem
autorização da delegacia de ensino, procurou a então
delegada da
Superintendência Regional de Ensino de Varginha, Lídia
Foresti, que se interessou
pelo projeto e autorizou a formação da escola, cedendo uma
professora e uma
funcionária de apoio, além de algumas mesas e cadeiras.
Assim iniciou-se, em
1984, a
Escola Estadual Fundamar, uma iniciativa da Fundação 18 de Março, com o
apoio da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais.
Com a colaboração financeira de um vizinho, um antigo
barracão da fazenda
foi reformado para abrigar a primeira turma da escola. Era
uma única sala para
todas as séries. Um mês depois, 27 alunos já frequentavam a
sala pioneira.
No ano seguinte, formaram-se turmas até a 4a série, e cada
uma ganhou sua
própria sala. Apenas as crianças entre quatro e seis anos
continuaram num espaço
conjunto. No segundo semestre, foram iniciadas as primeiras
oficinas artísticas,
incluindo retalho, fiação, cerâmica e horta. Com o apoio da
Secretaria de Educação,
artistas e artesãos da região foram contratados como
monitores.
Sonho coletivo
O sonho de construir uma escola diferente começou a atrair
novos
colaboradores. Creusa Ornellas conta com carinho do
pesquisador austríaco Franz
Leher:“Quando isso aqui ainda era um grande pasto, ele se
sentou num toco de
árvore, fechou os olhos e sonhou. Sonhou com um espaço cheio
de meninos e
meninas correndo. Imaginou as crianças casando e trazendo
seus filhos. Hoje já
temos os filhos e logo teremos os netos”. Especializado em
agricultura orgânica,
Franz Leher morou na fazenda, iniciando ali, aos 80 anos de
idade, o projeto da
horta orgânica e do cultivo de macadâmia – uma castanha
natural da região Norte,
de alto valor nutritivo.
As colaborações nesse período inicial foram as mais variadas
possíveis, lembra
Creusa:“Havia um motorista de caminhão, Sr. José Messias de
Melo, que esperava
até as 10 horas da noite para levar para casa os
funcionários da fazenda depois do
curso noturno de alfabetização de adultos. Percebendo o
esforço de todos, ele se
negava a cobrar, dizendo que também queria colaborar e dar
um pouco de si”.
Entre tantos outros, Creusa também fala de sua sobrinha, a
assistente social e
historiadora Maria Lúcia Prado Costa, que começou a
trabalhar na escola, quando
foi inaugurada, em 1984. Em 1991 ela foi morar na fazenda e,
no ano seguinte,
assumiu a coordenação das oficinas. Em seguida, começou a
desenvolver a
metodologia dos Cadernos de Estudos Sociais – marco
fundamental na pedagogia
da escola.
MARCOS DA ESCOLA FUNDAMAR
1968 - Surgimento da Fazenda Santa Rita, no município de
Paraguaçu (MG).
1978 - Criação da Fundação 18 de Março.
1983 - Garantia de transporte para as crianças da Fazenda Santa
Rita
frequentarem a escola da cidade.
Início das atividades educativas com as crianças em uma área
reservada da Fazenda Santa Rita.
1984 - Criação da Escola Estadual Fundamar, com turmas de
Educação
Infantil a 4a série.
1985 - Início da parceria com a Secretaria de Educação de
Minas Gerais.
Início das oficinas culturais na escola.
1989 - Formalização do convênio com a Secretaria de Educação
de Minas
Gerais.
1993 - Início das turmas de 5a a 8a série do Ensino
Fundamental.
Produção dos primeiros Cadernos de Estudos Sociais.
2003 - Início da parceria com a Rádio Objetiva I, com
divulgação de projetos
e temas trabalhados na escola e informes da Pastoral da
Criança em
um quadro fixo no programa semanal “Objetiva Notícias”.
A ESCOLA NO ESPAÇO
A Escola Estadual Fundamar situa-se em uma ampla área verde,
com casas,
plantações, pastos, açudes, cerrados e matas preservadas. No
total, são 80 hectares,
originalmente pertencentes à Fazenda Santa Rita. A
serenidade da arquitetura se
soma à beleza das colinas, córregos e cerrados. Professores
e alunos acham a
Fundamar um local bonito e bem cuidado. Em nenhum lugar se veem lixo, papel no
chão, latas ou garrafas. Ao mesmo tempo, não existe nada de
luxuoso ou supérfluo.
Espaços acolhedores
A escola espalha-se por várias casas que pertenceram a
colonos, algumas
delas sem forro, com o telhado visível e chão de cimento
queimado. Em cada uma
funciona uma sala de aula, com dois banheiros quase sempre
externos.Todas são
identificadas por uma placa pendurada no teto ou na porta
com o nome do espaço,
facilitando a comunicação visual dos visitantes e fazendo a
linguagem escrita,
quase ausente na zona rural, ganhar importância.
Dentro da sala, tudo o que é necessário está presente:mesas
e cadeiras,
quadro negro, estantes para livros, espaço para as crianças
se movimentarem e
exibirem suas produções. Quadros de aviso informam as
novidades, como as festas
do mês ou a visita de ex-alunos.
No centro do terreno, um grande carramanchão redondo, com
paredes baixas
em forma de caracol, serve de espaço de encontro. É usado
para lanche, reuniões
com os pais, brincadeiras protegidas do sol e da
chuva.Também há quadras de
esporte e jogos.
O espaço de música é um antigo celeiro de milho, acima do
nível do chão,
numa construção tipo palafita, com uma escadinha de madeira
dando acesso ao
assoalho de tábuas. No seu interior, aparelho de som,
berimbau, quadro negro –
cenário onde as crianças soltam a voz, mexem o corpo,
acompanhando o violão
tocado pelo professor.
Bem próxima, fica a sala onde as crianças pequenas
desenvolvem suas
atividades. Há ainda a casa de artes e ofícios, a
marcenaria, a oficina de cerâmica, a
de cestaria e a de computação.
Presença da natureza
O espaço pedagógico, entretanto, não se limita às salas de
aula, estendendo-se
pelas sombras das árvores. Sempre que o clima permite, as
atividades acontecem ao
ar livre. No geral, as crianças passam pelo menos metade de
seu tempo debaixo das
árvores, na horta, no parque ou no campo de esporte.
Acompanhando as estações do ano, as árvores, flores e colinas
se pintam de
diferentes tons de verde, vermelho, amarelo. A vida no campo
se faz presente.
Olhando em frente, a vista vai longe. Nas pequenas colinas,
um rebanho de vacas
leiteiras pasta tranquilamente. De vez em quando, avista-se
uma carroça na estrada.
Cenas que tomam conta do imaginário das crianças e se
integram, de maneira quase
imperceptível, à aprendizagem diária.
O Cerrado
Texto produzido por João Ernesto Campos Prado, monitor da
horta
da Escola Fundamar, e publicado nos Cadernos de Estudos
Sociais.
Até o ano de 1970, onde hoje está localizada a Escola
Estadual Fundamar, era uma área de cerrado, mais
conhecida por cerrado do Braguinha. Esse cerrado era em
terras que por muitas e muitas décadas foram
improdutivas. Uma pequena fatia do imenso cerrado que
existia entre Paraguaçu e Machado.
Apesar de serem terras desacreditadas, eram muito ricas em
água, flora e fauna, que serviam para o sustento
de muitas famílias. Suas águas são profundas de grandes
nascentes cristalinas e com elas são feitos lindos açudes
com diversas qualidades de peixe: mandi, traíra, cará, carpa
e tilápia. Tem também um pequeno rio, que atravessa
essas terras, conhecido por rio Machado. Sua nascente é em
Silvianópolis. Ele corta as terras de S. João da Mata, a
cidade de Machado, atravessa nos fundos do Bairro Chico dos
Santos e desagua na represa de Furnas a poucos
quilômetros acima da ponte entre Paraguaçu e Alfenas. (...)
A flora do cerrado era formada por pequenos arbustos:
araçá-de-porco, candeinha, ipiúna, peito-de-pomba,
angico e cambuí, que eram cortados para o uso de mourões no
feitio de cerca; o barbatimão cuja casca era explorada
para ser vendido em curtumes para o curtimento de couro; o
maroleiro que só servia para a produção do marolo que
foi fruto tradicional da região. Tinha também árvores de
grande porte, a maçaranduba, óleo de cupaíba, jatobazeiro,
angazeiro e figueira.
A fauna era formada pelo Lobo-Guará, Cachorro-do-Mato, Tatu,
Lontra, Jaguatirica, Paca, Veado, Capivara e
muitos outros.
Em 1970, chegava ali a Firma Sociguaçu, pioneira do
desbravamento daquele cerrado, que com grandes máquinas
de esteira iam derrubando e enfileirando e no lugar destes
pequenos arbustos faziam grandes plantações de eucaliptos.
E está aí hoje a Fundamar, esta escola que ensina e educa a
crianças da comunidade vizinha, Bairro dos Alves,
Macuco, Chico dos Santos, Castilho, Tavares, Pica-pau,
Papagaio e Ouro Verde.
E ao seu redor hoje podemos ver grandes plantações de milho,
feijão, mandioca, batata, arroz e o café que duas
décadas atrás eram produzidas em cultura.
O UNIVERSO RURAL
Além da paisagem natural, a escola busca decifrar e
valorizar o cenário cultural
ao qual pertence, ou seja, o ambiente rural mineiro. Durante
o processo de
sistematização, nas investigações sobre quem seria este
homem do campo, os
educadores olharam para fora, analisando as comunidades rurais,
e para dentro de
si mesmos, para suas infâncias, seus pais e avós. Nesse
processo, vieram à tona
emoções, reflexões e análises importantes.
Preconceito
A primeira situação percebida foi o preconceito em relação à
população que
vive no campo. Os educadores logo questionaram:“Por que
criança rural? Criança é
criança em qualquer lugar do mundo. Parece que ao se falar
de escola rural é como
se fosse o primitivo pitoresco. As pessoas vêm nos visitar
achando que somos um
zoológico”.
O desconforto dos educadores é ainda mais forte quando se
fala do caipira. A
palavra já incorporou um sentido pejorativo, da pessoa sonsa
e lenta, tal como foi
retratada por Monteiro Lobato no personagem Jeca Tatu.
Na análise de Antonio Candido (1), a palavra caipira é definida
como um modo de
ser, um tipo próprio de vida, uma cultura. Não se trata de
uma etnia ou raça
específica. O caipira traz na sua cultura a influência semi-nômade, rústica,
aventureira e desbravadora dos bandeirantes portugueses e
dos primitivos
habitantes da terra.
Por sua vez, a psicóloga junguiana Isabel Labriola (2) aponta
que o caipira
incorpora a persona rústica que responde a um arquétipo do
ánthropos, o homem
natural. Para ela, os estímulos da natureza são altamente
significativos para a
compreensão e manutenção da vida, gerando uma cultura de
troca com a própria
natureza e seus mistérios. O homem urbano, por ter uma
cultura técnica e industrial
pretensamente mais evoluída, sente-se superior,
caricaturando o caipira como
atrasado e colocando-o em espetáculos pitorescos de
inferioridade.
No sentido contrário, a população rural estabelece com a
urbana a mesma
relação que os países subdesenvolvidos têm com os
desenvolvidos:“Desde o nosso
mito de origem e colonização, ficamos submetidos a uma
condição de inferioridade
que continua sendo atuada e mantida historicamente, para
garantir diferenças
econômicas, sociais e políticas. Somos, aos olhos e ações do
primeiro mundo, os
‘subdesenvolvidos’, os ‘ignorantes’ ou ‘incultos’, os
‘improdutivos’, os ‘coitados’, os
‘atrasados’, uns ‘caipiras pitorescos’. Somos os pobres, os
depositários da função
inferior da América... Acontece que acolhemos em nós esta
desigualdade” (3). Um
estereótipo do qual é difícil de se desfazer.
(1) Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo, Livraria
Duas Cidades,1987.
(2) Isabel Labriola,“Do Analista-Caipira ao Caipira Analista” in
XIII Moitará, República do Pica Pau Amarelo – Arquétipos da Cultura Caipira,
Campos do Jordão, SBPA, 1999.
(3) Isabel Labriola, op. cit.
Comunidades
A escola atende comunidades variadas, que apresentam traços
em comum,
mas também características próprias. Algumas, por exemplo,
são verdadeiras vilas
ou colônias, formadas por moradias próximas. Dessa forma, as
crianças se
encontram constantemente e brincam juntas, prolongando o
relacionamento
existente na escola. Em outras, as casas ficam isoladas, e
as crianças sentem-se
ainda mais atraídas pela escola, por ser o único espaço de
relação e convívio com
meninos e meninas da mesma idade. Há ainda comunidades que
parecem vilas
urbanas, com lotes de moradia sem terreno para plantar.
Essa diversidade de bairros confirma a descrição feita por
Antonio Candido nos
seus estudos sobre a comunidade rural, quando afirma:“O
bairro é uma estrutura
fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no
agrupamento de algumas ou
muitas famílias mais ou menos vinculadas pelo sentimento de
localidade, pela
convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas
atividades lúdico/religiosas. As
habitações podem estar próximas umas das outras sugerindo
por vezes um
povoado ralo; há bairros de unidade frouxa, centrífugos, com
um mínimo de
interações. Outros têm a vida social e cultural mais rica,
favorecendo a convergência
e as atividades comuns num ritmo que permite chamá-los de
centrípetos”4.
De modo geral, as comunidades são marcadas pela mobilidade
familiar
causada pelas mudanças de emprego. Outra característica
comum são as rápidas
transformações culturais provocadas pela interação – muitas
vezes imposta – com a
vida urbana.
Ir para a cidade é um sonho constante nessas comunidades. A
cidade surge
como sinônimo de vida melhor, de lugar mais desenvolvido e
confortável. Parece
haver a ilusão de que estar na cidade será suficiente para
progredir e poder
consumir os produtos desejados.
“A realidade das famílias difere de acordo com a cultura de
cada comunidade. As do Bairro
do Papagaio, por exemplo, são normalmente assalariadas e têm
três, quatro ou mais filhos.
Gostam muito de futebol, festa e baile. A religião ocupa
também um lugar de destaque na vida
familiar. Esta comunidade não parece demonstrar muita
preocupação com o futuro, mas de
qualquer forma valoriza muito a escola.” (Altaíde Xavier Junqueira, diretor da Escola Estadual
Fundamar.)
Famílias
Tanto nos desenhos das crianças como nas falas dos
educadores, as famílias
aparecem como sendo numerosas. E quanto mais pobre é o
colono,maior o
número de filhos. Para muitos, a crença de que um maior
número de filhos
significará mais mão-de-obra para o trabalho continua
valendo.Mas alguns
educadores já percebem uma alteração no perfil familiar,
identificando o número
máximo de três ou quatro filhos, e uma média de dois.
Segundo a explicação das
crianças no Caderno de Estudos Sociais de 2002,“isto
acontece porque família
grande dá muitos gastos”.
O homem é a figura central no sustento das famílias. Ele
detém a força de
provedor, que consegue o trabalho e moradia nas fazendas. Já
a mãe é vista como
o centro da vida familiar, ocupando-se dos trabalhos
caseiros e de algumas
atividades na roça. É ela quem cuida dos filhos, dos
parentes idosos e dos doentes.
Esta é uma forte diferença em relação à família pobre
urbana, cujas mulheres,mães
e avós são cada vez mais o arrimo não só das relações,mas
também do trabalho e
da sobrevivência dos filhos.
Embora os pais não tenham uma relação próxima com as
crianças, eles têm se
mostrado assíduos e interessados nas reuniões da escola. O
que pode significar a
percepção deste espaço de formação como perspectiva de
futuro.
Uma questão enfrentada constantemente pela equipe é o
alcoolismo, assunto
presente nas descrições e reflexões feitas pelas crianças
sobre as famílias. A
separação dos pais é outra situação comum. Cerca de 20% dos
alunos das 2a, 3a e
4a séries em 2002 não viviam com os dois pais, mas com um
deles e sua nova
parceira ou parceiro. Segundo os educadores, essa
mobilidade, antes urbana, já
parece ser vista com naturalidade, principalmente depois que
a família volta a se
estabilizar.
Quando os pais morrem ou não conseguem assumir a criação dos
filhos, a
criança é sempre acolhida por um dos avós, tios ou parentes
mais próximos. Além
da família estendida, as relações de compadrio aumentam o
cerco de proteção,
prevenindo o abandono da criança. Essa é outra diferença
significativa em relação à
família urbana de poucos recursos. Ao contar menos com as
relações de parentesco
e apadrinhamento, as crianças pobres das cidades estão
sujeitas a um maior risco
de abandono.
“A preocupação central da família é a alimentação. Dentro de
casa, a parabólica e a TV já
estão presentes. Na parede, o quadro da Última Ceia divide
espaço com o retrato de Sandy e
Júnior – um pé na religiosidade e outro nos mitos da
infância da Rede Globo. O cachorro divide
o espaço com a criança. O sonho de consumo é ir para Aparecida
do Norte. E a mala está
sempre pronta, de repente podem ter que se mudar.” (Maria Lúcia Costa Prado, supervisora das oficinas)
Trabalho
As famílias vivem como colonos assalariados, pequenos
proprietários ou uma
combinação dos dois.Mas qualquer que seja o vínculo, com a
terra ou com os
patrões, são igualmente pobres.
As mulheres pouco participam do trabalho remunerado,
especialmente em
razão da mecanização da lavoura e da crise cafeeira. Em
algumas comunidades
elas conseguiram se organizar e criar uma alternativa de
renda. No Bairro do
Ouvidor, um reduto de pequenos proprietários, elas produzem
doces e artesanato
para vender.
Quanto ao trabalho das crianças, observam-se duas posturas
diferentes. De um
lado, acredita-se que os filhos possam ajudar no trabalho
para diminuir a pobreza da
família. De outro, a infância é percebida como uma fase da
vida em que a criança
deve receber mais do que ajudar. Nesse sentido, o
atendimento integral oferecido
pela Fundamar revela-se como um fator decisivo para
prevenção do trabalho
infantil, pois garante diretamente às crianças o direito de
brincar e estudar, além de
permitir que as mães busquem renda e trabalho próprios, sem
precisar impor aos
filhos mais velhos o cuidado da casa e dos irmãos.
De qualquer forma, a busca de trabalho é um desafio
constante. Às vezes, a
produção cai, faltam empregos, e as famílias precisam se
mudar em busca de novas
oportunidades. A intensa mobilidade traz consequências
diretas na forma de viver
da família e no processo de desenvolvimento e aprendizagem
das crianças.
Alimentação
A alimentação é vista como primeira necessidade e é muito
valorizada pela
família. Segundo Antonio Candido, em seus estudos sobre a
sociedade caipira, o
alimento tem valor simbólico e uma forte importância social.
Relembrando ou
refletindo a situação de crise e escassez dos alimentos
prediletos, cria-se uma
“fome psíquica”, que confere um valor especial à
alimentação, influenciando a
personalidade, a visão de mundo e os hábitos sociais.
Entre as famílias, embora não haja abundância, também não há
fome, e as
refeições se constituem em um momento de partilha. Como
conta a coordenadora,
Maria Lúcia Prado Costa,“é raro visitar uma casa de pais em
que não seja oferecido
algo para comer, mesmo que seja laranja do pé”. Nas mesas, cada
vez estão mais
presentes produtos industrializados, como macarrão, biscoito
e massa de tomate.
Dificilmente encontra-se milho, mandioca, porco ou galinha
no terreiro. Maria Lúcia
explica que as famílias que vivem como colonos assalariados
não têm plantação
em casa por restrição do patrão ou por estarem apenas de
passagem. De qualquer
forma, apesar da mudança nas rotinas, os horários de
refeição continuam sagrados.
As crianças, logo quando descem do ônibus, correm para ler o
cardápio do dia
no quadro negro do refeitório, o que é um ótimo incentivo à
leitura. Na reunião de
pais é organizada uma feirinha de alimentos, onde doces,
pastéis e coxinhas são
vendidos e comprados com alegria.
Religiosidade
A religiosidade é parte forte da cultura local. Prevalece a
tradição católica, com
a celebração de missas, rezas do terço, grupos de oração,
procissões e romarias.
Há uma especial devoção à Nossa Senhora Aparecida. A imagem
da santa, indo de
casa em casa, acompanhada de cantos e orações, é uma
tradição antiga que se
mantém acesa.
Na Fundamar, não só os pais mas também os educadores são
pessoas
religiosas. Muitos participaram ou participam de movimentos
sociais católicos e até
mesmo os lideram. Segundo os educadores, as crianças desde
pequenas rezam
com muito fervor e, quando têm alguma intenção especial,
pedem aos pais para
fazerem orações em grupo.
Lazer e diversão
São poucas as opções de lazer para os adultos. O futebol é
um dos raros
motivos de encontro e diversão na comunidade.Todo domingo,
os homens
costumam se reunir para jogar bola, acompanhados das
mulheres e crianças, que
se entusiasmam na torcida.
Para os homens, outro ponto de encontro habitual é o boteco.
É ali onde se
reúnem para contar seus “causos”, trocar informações, fazer
negócios e... tomar
cachaça. Desde a época dos engenhos de cana-de-açúcar, o
álcool fabricado nas
fazendas tem presença forte nas comunidades rurais. De
geração em geração, é
seguida a máxima:“Homem que é homem bebe”. Os casos de
alcoolismo são
constantes. (Leia texto escrito pelos alunos da Fundamar
sobre esse assunto na
pág. 40.)
As mulheres, por sua vez, pouco se divertem. No seu
dia-a-dia, não há separação
entre horário de trabalho e de descanso ou lazer. Nos fins
de semana, a
família raramente vai à cidade, a não ser nas celebrações,
em geral religiosas.
Dificilmente tiram férias ou viajam.
A infância longe das cidades
Segundo os educadores, a infância no campo é “como outra
qualquer”. De
qualquer forma, ser criança no campo parece ter algumas
vantagens em relação à
infância nas cidades. A principal delas talvez seja não
viverem fechadas, tendo mais
espaço e liberdade para encontros e brincadeiras.
O cotidiano das crianças varia de comunidade para
comunidade.“Em algumas,
elas criam seus próprios brinquedos, como na época de seus
pais. Fazem bonecas
de sabugo de milho, brincam de roda pião, pique, pipa,
cantigas de roda... Em
outras, apesar de terem espaço, parecem viver como as
crianças dos centros
urbanos. Ficam muito tempo dentro de casa, diante da
televisão”, observam os
professores.
Na visão dos educadores, as crianças se expressam muito bem
no desenho,
representando a realidade que vivem com riquezas de
detalhes.Mas têm
dificuldades na expressão oral. Têm dificuldades de dar
informações sobre si, em
falar seu nome, nome do pai e da mãe, seu endereço.
Dizem:“Eu moro na roça, na
roça do ‘homi’”. A relação com o tempo também é diferente.
Dificilmente as
crianças usam relógio ou consultam o calendário, por mais
que estes estejam
pendurados nas paredes de suas casas.
Todos esses itens são investigados pela escola, sendo
contemplados no projeto
pedagógico. No dia-a-dia não faltam estímulos para cada um
falar de si, descrever,
interpretar, construir a noção de tempo e espaço.
Ritmo de vida
“O povo rural”, descrevem os educadores,“é um povo sem
sobressaltos ou
medos. Apesar da vida dura, são curiosos e gentis. Existe
tempo para prestar
atenção aos outros. As pessoas daqui são mais cordiais e
cooperativas.”
Tradicionalmente, o ritmo do campo é marcado pela natureza:
hora de plantar,
hora de esperar, hora de crescer, hora de colher. Nas
últimas décadas, um novo
ritmo de produção foi trazido com a expansão dos adubos,
fertilizantes, tratores e
colheitadeiras.
As crianças rurais mostram uma maior serenidade, inclusive
corporal e motora.
Um pequeno exemplo é seu comportamento dentro do ônibus na
ida e na volta da
escola. Elas permanecem sentadas, tranquilas,muitas vezes
olhando a paisagem
pela janela.Também é significativa a relação com os animais
– presentes na
maioria das casas. Esse vínculo torna-se um grande
catalisador do afeto,
desenvolvendo nas crianças uma postura protetora, que
combina responsabilidade
e ternura.
“As familias não vivem isoladas do mundo. São famílias
rurais, mas têm contato com a
cidade. Os objetos de consumo urbano, como carro,
parabólica, TV, som, celular, já fazem parte
do dia-a-dia de várias crianças.” (Cibele Ercília Pinto Costa, supervisora da Educação infantil)
Conflitos e mudanças
Ao mesmo tempo que os educadores ressaltam um jeito de ser
próprio das
famílias rurais, não negam que há um intenso contato e
conflito com o mundo
urbano. Seja no trabalho ou no lazer, a chegada das novas
tecnologias tem forte
impacto na vida das crianças e dos adultos. Na roça, por
exemplo, a mecanização
do trabalho faz com que não haja mais espaço para o saber
sobre a plantação, a
chuva, a colheita. Os remédios e alimentos caseiros também
cedem lugar aos
produtos trazidos das cidades.
O início da noite, um tradicional momento de encontro para
os comentários
sobre o dia, a “contação de causos”, é hoje vivido em frente
ao aparelho de
televisão, visto como algo negativo pelos educadores.
Algumas avaliações colhidas
entre eles confirmam isto:“A televisão incentiva a
passividade”,“A criança fica com
preguiça de criar”. Ou ainda:“É verdade que a TV traz
informações. Mas geralmente
os pais não percebem a hora de desligar e não avaliam quais
são os programas
prejudiciais. Para eles, qualquer programa está bom.”
Um pequeno detalhe, como os nomes das crianças, demonstra a
complexidade
dessa influência. Herdeiras da cultura religiosa portuguesa,
as famílias costumavam
batizar seus filhos de Antônio, José ou Maria. Nos últimos
anos, entretanto,
aumentou a variedade de nomes – muitos deles estrangeiros –
inspirados em
filmes, novelas, jogadores de futebol, e divulgados pela
televisão. Mas o mais
interessante é notar que surgiram nomes como Kelly Aparecida
ou Wesley Antônio,
fruto da interação entre o novo e o tradicional.
“As crianças e jovens estão com um pé no rural e outro no
urbano e têm que se
equilibrar”, diz a coordenadora Maria Lúcia Costa Prado,
resumindo o desafio vivido
pela escola.“A escola tem tentado trazer estes dilemas –
cidade x roça, homem x
natureza, rapadura x biscoito – para dentro da sala de aula
para que sejam mais
bem discutidos e compreendidos”, afirma. A Fundamar assume,
portanto, o papel
de estimular a discussão e entendimento dos conflitos para
que a população que
vive no campo escolha melhor seus próprios caminhos.
A PROPOSTA PEDAGÓGICA
1. Etapas de uma proposta pedagógica
Dedicada a refletir e sistematizar o trabalho desenvolvido
pela Escola Estadual
Fundamar (5), a supervisora Maria Lúcia Prado Costa identifica
quatro fases principais
na sua trajetória pedagógica:
1984 e 1985 - Desenvolvimento comunitário
A escola começou com um forte papel comunitário, que norteou
seus dois
primeiros anos de atuação. Além das crianças, pretendia-se
atingir também as
famílias de trabalhadores rurais. Havia como propósito a
fixação do homem no
campo, o desenvolvimento da agricultura orgânica e a geração
alternativa de renda.
Por um lado, foram criados diferentes espaços para
convivência e integração
dos adultos, como o clube de mães, o time de futebol e um
conjunto musical. Ao
mesmo tempo, aconteciam atividades de orientação de plantio,
higiene, educação
para o lar, direitos trabalhistas, história de vida, entre
outras.
Havia a expectativa de que, com o tempo, a própria
comunidade se
organizasse, criasse um conselho comunitário e gerisse o
projeto. Mas foi tudo mais
difícil do que se imaginava e, aos poucos, a escola começou
a redirecionar seu foco
de atuação.“Olhando para trás, percebemos que, na falta de
uma proposta
pedagógica própria, a escola incorporou a ideologia presente
na época, tomando
para si o encargo de superar os entraves para a resolução
dos problemas dos
trabalhadores rurais”, avalia Maria Lúcia.
1986 a
1989 - Supervisão não formal
Em 1986,
a escola começa a buscar seu próprio quadro de
supervisores – tanto
administrativos como pedagógicos. Logo surge uma grande
dificuldade, que
permanece até hoje: encontrar profissionais especializados,
dispostos a morar em
um lugar tão distante e isolado.
Para suprir a ausência de supervisão, a escola investe
intensamente em cursos
pontuais de formação e qualificação com especialistas em Educação
e Artes. Os
dois desafios principais deste período foram os de aprimorar
a qualidade do
trabalho e integrar as atividades da escola formal às
oficinas.
1990 a
1992 - Proposta pedagógica
O projeto de desenvolvimento comunitário dá lugar a uma
proposta pedagógica
centrada na criança. Entende-se que a comunidade não será
atingida diretamente
pela escola, mas por seus alunos. Ao voltar para suas casas,
cada um poderá
promover o projeto de organização comunitária, incluindo
discussões sobre saúde,
saneamento, cultura, lazer,memória e direitos sociais.
Nessa mesma época, firma-se o primeiro convênio entre a
Escola Estadual
Fundamar e a Secretaria de Educação de Minas Gerais, dando
formato jurídico à
cooperação já existente. No esforço de enriquecer sua
pedagogia, a escola introduz
os módulos temáticos: índios do Sul de Minas ou a história
da cidade de Paraguaçu,
por exemplo; buscando elaborar conceitos de forma mais
significativa e desenvolver
a reflexão e o pensamento crítico.
1993 até hoje - Convivência de pedagogias
Em 1993 surgem os Cadernos de Estudos Sociais com patrocínio
inicial da
Fundação Vitae – Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social
e da Secretaria da
Educação de Minas Gerais. Posteriormente, a iniciativa é
apoiada pelo Programa
Crer Para Ver, da Fundação Abrinq e da empresa de cosméticos
Natura. Os Cadernos
definem uma linha pedagógica que era procurada pela escola
desde seu início:
transformar a realidade do aluno em objeto de constante
investigação.
O atendimento é ampliado até a 8a série. A escola passa a
ter uma supervisora
para cada área: Educação Infantil, primeiro e segundo ciclos
do Ensino Fundamental
e oficinas.Mas a intensa rotatividade dos supervisores,
somada às mudanças nos
fundamentos e estruturas oficiais do Ensino Fundamental,
dificulta a solidificação de
uma pedagogia.
Entretanto, a supervisão das oficinas e dos Cadernos de
Estudos Sociais, a
cargo da própria Maria Lúcia, mantém-se constante e torna-se
o fio condutor da
proposta de aprendizagem. Diferentes correntes e
interlocuções pedagógicas se
fazem presentes, com destaque para a proposta de pesquisa
participante de Carlos
Rodrigues Brandão6, que orienta a metodologia investigativa
e a produção de
conhecimentos desenvolvidas pela escola; os estudos de
Antonio Candido (7),
adotados como referencial para o entendimento das
comunidades rurais; e as
reflexões de Milton Santos (8) sobre a construção do espaço
geográfico e da
cidadania.
2. Bases conceituais que fundamentam a proposta
Somando e recriando os diferentes conceitos, a Escola
Estadual Fundamar constrói
uma compreensão própria de aprendizagem, baseada nos seguintes
alicerces:
_ Os conteúdos trabalhados partem da cultura e dos saberes
dos alunos
e suas famílias. Os alunos participam de um movimento de
investigação
sobre si próprios e seu contexto espacial e familiar.
_A realidade é problematizada, e os alunos usam de sua
criatividade
para buscar soluções, uma vez que não são apresentados
modelos prontos.
_Todos são aprendizes. Embora com níveis de saberes
diferentes, alunos
e professores se sentem autores da construção do seu
conhecimento,
apoiados entre si e pela supervisão.
_ A escola deve ser prazerosa, porque aprender deve ser
interessante,
uma fonte de alegria, não de pressão ou castigo.
_ O processo de pensamento do aluno deve ser objeto de
estudo
coletivo dos professores.
(6) Carlos Rodrigues Brandão, Pesquisa participativa. São Paulo,
Brasiliense, 1990.
(7) Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo,
Livraria Duas Cidades, 1987.
(8) Milton Santos, O espaço do cidadão. São Paulo, Studio Nobel,
2002.
O SER HUMANO QUE QUEREMOS FORMAR
1 Um ser humano consciente e crítico.
2 Que tenha condições de se comunicar, se relacionar, tomar
posições,
enfrentar os desafios da sociedade na busca de seus
objetivos.
3 Que tenha autonomia de pensamentos e ações.
4 Que seja consciente da sua realidade, de seu mundo.
5 Que consiga fazer escolhas e assumi-las, com as perdas e
ganhos que
isso requer.
6 Que seja sujeito do seu desenvolvimento e da sua
aprendizagem.
7 Que saiba buscar os caminhos para se desenvolver.
8 Que tenha sonhos, esperanças e sentimentos de alegria pela
vida.
9 Que tenha dignidade.
10 Que saiba viver em igualdade, respeitando as diversidades
culturais.
11 Que saiba enfrentar o mundo lá fora.
12 Que ocupe seu espaço e que valorize sua profissão, aquilo
que faz.
13 Que tenha clareza dos seus direitos e seja cumpridor de
seus deveres.
14 Que valorize os princípios éticos, morais, religiosos e
sociais.
15 Que se preocupe em gerar a vida e não em criar bombas.
Resultado de oficina de reflexão da equipe de coordenação
durante o processo de sistematização.
3. A metodologia investigativa
Um dos pilares da proposta pedagógica da Escola Estadual
Fundamar é uma
metodologia investigativa, que leva a escola a pesquisar,
observar e analisar
constantemente a criança e seu contexto. Esta investigação é
feita em diferentes
planos pelos supervisores, professores e pelas próprias
crianças que, de forma
sistemática e organizada, se propõem questões a serem
pesquisadas e respondidas:
“Quem somos nós?”“O que é ser ‘do campo’?”“Qual é nossa
história?”“Como é
nossa escola?”“Como são nossas casas?”“Como é nossa
família?”“Como é nossa
cidade?”“Por que mudamos tanto de moradia?”“Quais são as
nossas dificuldades?”
“Por que temos estas dificuldades?”“O que queremos para o
nosso futuro?”
A realidade da criança torna-se ponto de partida para o
processo de leitura do
mundo. Considerada como sujeito intelectivo e detentor de
cultura própria, a criança
é estimulada a se tornar agente participante na construção
de sua autonomia como
cidadã.“Nosso objetivo é conseguir que elas tenham autonomia
de pensamento e
de ação. Se conseguirem fazer e assumir suas escolhas, com
as perdas e ganhos
que elas trazem, acho que está de bom tamanho”, sintetizou
Maria Lúcia durante a
discussão dos objetivos pedagógicos da escola.
A postura investigativa provocada nas crianças também está
presente nos
professores.Todos, em qualquer idade, devem buscar novos
conhecimentos. Neste
momento, com a exigência oficial de diploma superior para
exercer o magistério,
praticamente todos os professores da Fundamar de Ensino
Fundamental já são há
muito tempo graduados. Os atuais monitores artesãos de
oficinas estão
frequentando as faculdades das cidades vizinhas, provocando
um crescimento no
grupo. Segundo Maria Lúcia,“é bom os alunos verem que os
professores também
estudam e pesquisam”.
Dessa forma, as crianças observam que sempre existem
perguntas a serem
respondidas, que o saber precisa ser continuamente garimpado
e que ele permite
às pessoas se conhecerem melhor, bem como a sua realidade. O
objetivo é sempre
o mesmo: fazer escolhas conscientes e conquistar uma vida
melhor, para si e toda a
comunidade.
Nesse processo, crianças, professores e educadores produzem
textos e montam
seus próprios livros, aprofundando reflexões, ao mesmo tempo
que investigam a
forma como se dá o conhecimento intelectivo das crianças,
como constroem suas
capacidades operativas e noções de tempo e espaço. Usando os
referenciais
conceituais construtivistas de Piaget e Vigotsky, os
professores exercitam a
fundamental capacidade de ouvir, observar e registrar,
passando a compreender
como as crianças desenvolvem o pensamento e como se
constituem como sujeitos.
“Trazer para o cotidiano das crianças (e dos professores) a
percepção dos problemas do
seu meio, desenvolvendo com elas o exercício de pensar sobre
as situações vividas, para melhor
compreendê-las e explicá-las, e se for o caso propor
soluções plausíveis, é a função da
escola.” (Caderno de Estudos Sociais de 2002, livro didático elaborado
pelos alunos e educadores da Escola Fundamar)
Descobrindo o espaço da escola
Texto da professora Sueli Pereira elaborado a partir do
relato das crianças e
publicado no Caderno de Estudos Sociais de 1998
“Com a ajuda de João Ernesto (monitor responsável pela
horticultura), fizemos o trajeto de uns 2 km, mais ou
menos, para conhecer a área de plantio e os açudes com suas
utilidades. Descemos e à nossa direita deparamos com
o plantio de batata-doce; do lado direito deste plantio, a
horta, onde se planta de tudo (verduras e legumes).
Descemos mais uns 50 metros e em frente ao açude do Flavinho,
segundo João Ernesto, o nome foi dado em
homenagem ao construtor deste açude. A água que abastece o
açude vem de uma restinga do mato. Se utiliza
desta água para aguar o jardim da casa da D. Creusa e o
viveiro do café.
Viramos à esquerda e andamos mais uns 200 metros e à nossa
direita nos deparamos com o açude do Meio.
Segundo João, a água que abastece este açude vem da mina de
Maçaranduba, e que tem este nome devido a uma
árvore nascida neste lugar. Essa mina é muito rica em água.
À nossa esquerda chamou-nos atenção o pomar com
laranjeiras, limoeiros e mexeriqueiras.
Continuamos a andar e mais uns 150 metros, chegamos em
frente ao açude Branco, que segundo João é o mais
velho, construído em 1802, a couro de boi. O abastecimento deste se
faz com a sobra do açude do Meio e com a sobra
da água na mina das Abelhas. Utiliza-se dessa água para a irrigação das grandes plantações (feijão, batata e milho).
Continuamos a andar e chegamos onde se capta a água da mina
das Abelhas. Esse foi o ponto final da nossa
pesquisa. O caminho dessa captação até a escola tem 1,5 km mais ou menos. O
percurso durou uma hora.
A excursão foi muita proveitosa, de maneira prazerosa as
crianças conheceram parte da história da nossa escola.
Durante este passeio, ficaram bastante curiosas. Perguntaram
o que estavam plantando, fizeram perguntas
sobre distância de um açude para o outro. João Ernesto falou
em quilômetros, Ludiélisson comentou que em 1 km há
mil metros. João falava o porquê da cor escura do Meio
devido ao lodo no fundo do açude. Eles discordaram, dizendo
que a água é escura, devido a muita sombra do mato que tem
ao redor. Queriam conhecer as minas; a que vem da
restinga da Maçaranduba e principalmente das Abelhas. Não
ficaram satisfeitos só com a localização de cada açude.
Queriam conhecer o açude Preto, que segundo João Ernesto,
antigamente abastecia o açude Branco. Hoje o açude
Preto desagua no ribeirão Ouvidor, que por sua vez desagua
no rio Sapucaí, em Guaipava.”
4. O tesouro da memória
A pedagogia desenvolvida pela Escola Estadual Fundamar
reconhece a
memória como ferramenta fundamental para a construção de
conhecimentos e
saberes. Por meio da pesquisa participante9, professores e
crianças fazem a
reconstituição das histórias pessoais e coletivas. Ao
resgatar a cultura do campo,
suas raízes e significados, buscam enfrentar a perda de
identidade e de sentido de
pertencimento aceleradamente vivida pela população local.
Estudos atuais de neurociência revelam a importância da
memória nos
processos de aprendizagem. É considerada a base de todo o
saber. Afinal, é a
memória que dá significado ao cotidiano, permite lembrar e
acumular experiências,
manter a identidade, formar e aprofundar vínculos. E mais: é
ela que garante a
apropriação de si, mantendo a integridade do indivíduo, a
identidade de um povo e
de uma cultura.
As crianças e professores refazem a história de suas vidas,
de suas famílias, sua
escola, cidade e país. A memória, portanto, não é entendida
como mero registro,
cópia da realidade ou como acúmulo de informações. Não é
usada só para lembrar
ou reviver, mas principalmente para refazer. Assume um papel
ativo, gerando
sentimentos e emoções, construindo hipóteses, ampliando e
aprofundando ideias,
analisando,modificando, criando e desejando.
Ela faz aparecer o que estava desaparecendo, promove
continuidade quando há
rupturas, favorece a unidade quando há processos
desintegradores, explica quando
há perguntas e, como resultado, dá possibilidades para que
cada sujeito ou grupo
busque seu lugar, seu valor singular, sua originalidade.
Nesta diferença, está
pautada a igualdade de todos terem direito a serem únicos,
como indivíduos ou
grupos.
A memória promove, assim, a reflexão do agora a partir do
antes. Constrói
conhecimentos e significados, para buscar o lugar de cada
um, de cada grupo e dar
lugar para todos.
Segundo o geógrafo Milton Santos,“existe uma íntima relação
entre a alienação
moderna e a construção do espaço do sujeito. Quando o homem
se confronta com
um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece e
cuja memória lhe é
estranha, este lugar é fonte de uma vigorosa alienação, uma
vez que o entorno
vivido é um lugar de interações e trocas,matriz de um
processo intelectual”10.
Mas se o espaço aliena, ele é também condição de
desalienação. O debate
sobre cidadania está intrinsecamente vinculado ao debate
sobre produção de
espaço como reconstrução da sociedade. Assim, a escola é um
espaço privilegiado
de interações e trocas e de construção de pertencimento.
(9) Carlos Rodrigues Brandão, Pesquisa participativa. São Paulo,
Brasiliense, 1990.
(10) Milton Santos, op. cit.
5. Construindo a memória local
Para dar instrumentos pedagógicos adequados aos alunos e
professores e
construir referências sobre a história e a geografia (o
tempo e o espaço) do seu
entorno, os educadores da escola saíram a campo
identificando depoentes,
reproduzindo fotografias, unindo fontes escritas que se
encontravam dispersas,
criando textos,mapas e desenhos. O objetivo é articular
todas essas informações
para criar um banco de dados sobre o tempo e o espaço
comunitários.
No início, seis eixos temáticos orientaram a produção:
ocupação e estrutura
fundiária; gado; café; pequena produção; educação e saúde;
religião e lazer.
Conhecendo nosso estado de Minas Gerais
Texto coletivo feito pelas crianças e professora de Educação
Fundamental, publicado no Caderno de Estudos Sociais de 2002
Nós sabemos que a origem do nosso estado vem das minas de
ouro que
foram descobertas pelos bandeirantes. O ouro de Minas foi
desaparecendo e
as pessoas resolveram ir para o campo chamado de Gerais
porque eles
estavam sem ouro, passando dificuldades e fome.
Para sobreviverem começaram a trabalhar com a agricultura e
pecuária,
(criação de gado).
Nosso estado é chamado de Minas Gerais e seu formato parece
com o
rosto de uma bruxa nariguda...
A baixa escolaridade dos moradores mais antigos da região e o número
reduzido de fontes escritas e fotográficas organizadas
definiram a história oral como
sendo a estratégia fundamental para coleta das informações.
Elegeu-se como tema
A história social do Sul de Minas, em busca da gênese da
classe trabalhadora rural
nas antigas regiões da Freguesia do Carmo Escaramuça (atual
Paraguaçu) e Santo
Antônio do Machado (atual Machado) a partir da segunda
metade do século XIX.
Afinal, como filhos de trabalhadores rurais, essa história
dizia respeito às crianças.
Entre outras fontes, foram entrevistados um filho de
escravos, que contou
histórias narradas pelo pai, bem como descendentes de
imigrantes italianos.
Também foram consultadas antigas hospedarias, arquivos
públicos, bibliotecas
municipais, entre outros. Essa pesquisa gerou o livro Fontes
para a História do Sul de
Minas: os trabalhadores de Paraguaçu e Machado (1850-1900),
de Maria Lúcia
Prado Costa, a coordenadora das oficinas da Fundamar, que é
historiadora de
formação. Publicado em 2002 com apoio do programa Crer Para
Ver, da Natura e da
Fundação Abrinq, com tiragem de 500 exemplares, a obra foi
distribuída
gratuitamente às escolas de Ensino Fundamental e às Secretarias
de Educação de
38 cidades da região de Varginha.
Na sequência, novos temas foram explorados: a história da
Associação de
Crédito à Assistência Rural (ACAR), a história das escolas
rurais da região, as
práticas de saúde da população, a história das parteiras e
benzedeiras tradicionais,
entre outros.
Esse rico acervo serviu de matéria-prima para alunos e
professores produzirem
material didático para as primeiras séries do Ensino
Fundamental.Textos
informativos e ficcionais narrando o ciclo dos principais
produtos da lavoura e da
pecuária local foram criados pelos alunos da Fundamar, que
também imaginaram
jogos de trilha sobre a natureza da região. As crianças
fizeram cartazes ilustrativos
das fases históricas da cultura do café, principal cultivo
da região, produziram um
croqui da escola, das fazendas e bairros atendidos, além de
mapas e plantas
urbanas dos municípios de Paraguaçu e Machado.
A mão-de-obra que impulsionou o ciclo cafeeiro no sul de
Minas Gerais (acima, retrato da família Fressato, de imigrantes italianos) foi analisada pela historiadora Maria
Lúcia Prado Costa e editada pela Fundação 18 de Março como um dos Cadernos de Estudos Sociais da Fazenda Escola
Fundamar.
Histórias de nossas vidas
Os alunos da Escola Estadual Fundamar são constantemente
instigados a
investigar seu tempo e espaço a fim de terem mais
consciência e de serem capazes
de perceber e atuar sobre sua realidade. Um exemplo dessa
prática é a construção
de textos coletivos sobre as Histórias de nossas vidas.
Às vezes, após a produção coletiva do texto, as turmas são
divididas em
pequenos grupos para que cada um crie uma situação sobre o
tema trabalhado.
Numa atividade sobre conflitos familiares, por exemplo,
foram montadas cenas
criativas especialmente sobre o uso de bebidas pelos pais,
gerando identificação e
debate nas turmas. A reconstrução e discussão dos conflitos
e elaboração sobre
possíveis soluções e mudanças dão às crianças consciência
das dificuldades e
melhores condições de se posicionar.
A história de nossas vidas
Texto produzido pelos alunos, publicado no
Caderno de Estudos Sociais de 2002
Pesquisamos com nossos pais algumas coisas sobre nossa vida.
A
maioria dos nossos colegas mora na roça (22 criancas na zona
rural) e o
restante mora na cidade. (quatro crianças na zona urbana).
Tanto na roça
como na cidade sabemos que existem problemas. Depois de
discutirmos com
nossos colegas e professora, achamos que na roça ainda é
mais calmo e
mais tranqüilo para se viver. Outro motivo é porque nascemos
na roça e
preferimos continuar morando aqui.
Mudamos algumas vezes e os motivos foram:
* fomos mandados embora, trocou o patrão;
* não estávamos contentes com o salário;
* ganhamos ou compramos casa na cidade;
* morte de alguém da família ou separação dos pais;
* mudamos da roça para a cidade ou o contrário.
O nosso colega Loran mudou da rua da Máquina em Machado para
a
fazenda do Sr. Edvan, no bairro Pica-pau, onde tem vários
parentes. O
pai de Loran não trabalha para o Sr. Edvan, mas mora na
fazenda dele.
A Bruna morava no litoral de S.Paulo em Ubatuba. O pai dela
cuidava
de chalés. Neste ano eles se mudaram para o bairro do
Ouvidor, onde o
pai comprou umas terras, mas ele trabalha para o Italiano.
Moramos em várias cidades como: Machado: Douradinho,
distrito de
Machado; Carvalhópolis; Carmo do Rio Claro; Alfenas; Belo
Horizonte;
Viçosa, cidades de Minas Gerais. E também em Ubatuba, no
estado de
S.Paulo. Outros nunca mudaram, nasceram e continuam morando
no mesmo
lugar, mas são poucos os que moram em casa própria, a
maioria mora em
casa dos patrões.
Em nossa família aparece de tudo, cada um com seu jeito
Texto coletivo produzido pelos alunos,
publicado no Caderno de Estudos Sociais de 1998
Alguns pais ajudam em casa fazendo comida, lavando roupa,
trocando os filhos, e
alguma coisa mais.
Outros não gostam de ajudar. Alguns não levam jeito e estão
cansados do serviço.
Percebemos que há muita briga em nossos lares, pois é a
danada da pinga que
atrapalha e destrói algumas famílias. Em alguns casos a
mulher sente vergonha de
sua bebedeira e do que ela faz. Percebemos que muitos pais
gostam mais da pinga do
que da própria família.
Gostaríamos que a pinga não existisse, para haver mais união
e alegria em nossas
casas.
Lucas sugeriu que fizéssemos alguns cartazes e procurássemos
remédios contra a
pinga. Elidison disse que tinha um remédio muito bom: um
copo de pinga mais pimenta
malagueta. Essa bebida queima tudo. Heberton disse que é só
cozinhar os pés de um
urubu e dar o caldo para eles beberem.
Outras simpatias foram citadas e eles disseram que sabiam
porque ouviram falar.
José disse que o tira-álcool é uma cacetada, compra na
farmácia; isso ele escutou
no rádio. Põe na comida ou no café sem o doente ficar
sabendo. Se ele tornar a beber
vomita até as tripas (sua irmã deu para o marido).
Alguns sugeriram que rezar ajuda e Rodrigo se prontificou em
trazer e de fato
trouxe alguns versos de seu pai que são muito bonitos:
Beija-flor de rabo branco
Dê três voltas no cupim
Deus me ajude e me dê inteligência para mim.
Na parede do meu quarto
Eu preguei uma cruz
Pra lembrar Jesus que também foi
Pregado na cruz
Vinte e cinco de dezembro
Quando o galo deu sinal, nasceu menino Jesus
Numa noite de Natal.
Em protesto contra a pinga, Lucas sugeriu que fizessem
cartazes para pregar
por todos os lados até mesmo na porta de certas casas. Mas
Edson disse: “Tem pai
que não sabe ler e os outros podem até nos agredir. Eles
acham que a criança não
sabe nada”.
Heberton concluiu: “E com isso eles não estão percebendo que
estão destruindo a
própria família”.
6. A
produção de conhecimento
Um marco pedagógico da Escola Estadual Fundamar é a produção
permanente
de conhecimento por parte dos educadores e das crianças, que
inclui três frentes
complementares:
Cadernos de Estudos Sociais
Em vez do tradicional material didático, pronto e acabado, a
Fundamar estimula
que os alunos e professores de cada classe elaborem seus
próprios textos, seguindo
o programa definido. Coletivos ou individuais, os textos são
reunidos nos chamados
Cadernos de Estudos Sociais, já conhecidos em todo o Sul de
Minas. A produção
CADERNO DE ESTUDOS SOCIAIS: UM EXEMPLO
Em 2002 o roteiro proposto aos alunos da 2a série estava
dividido em três
grandes temas:
A Família: identificação dos membros da família, suas idades
e as relações de
parentesco; construção do conceito de família; interação
familiar (debate sobre os
grupos de interação de cada membro: trabalho, escola, grupo
religioso, time de
futebol etc.); árvore genealógica; história de vida.
A Casa: construção de conceitos, com análise de diversos
tipos de casas,
contrastes entre as da cidade e as do campo etc.;
identificação da casa e
elementos adjacentes, como horta, casinha, paiol; elementos
de devoção: desenho
dos enfeites da parede da sala de visitas da casa e
descrição de seus significados;
representação do espaço interno da casa, em argila e em
planta baixa.
A Escola: saneamento (água de beber, de consumo geral,
esgoto, fossa, lixo);
proposta de melhoria do padrão de qualidade, como campanhas
coletivas ou
alternativas de reciclagem; croquis da escola, observando-se
a proporção e a
distância entre os equipamentos; batalha naval (exercício de
localização de pontos
do croqui a partir de indicações de referências
topológicas); áreas verdes da escola
(áreas de plantio, açudes, vegetação remanescente); história
da escola.
desse material busca superar o perceptível distanciamento
entre os textos
geralmente utilizados nas salas de aula e a realidade dos
alunos. Responde à
preocupação dos educadores de que a escola não se torne um
espaço engessado,
estereotipado, de mentirinha ou faz-de-conta, com currículos
sem sentido para a
criança atendida.
Esses cadernos são produzidos, ao longo do ano letivo, pelos
próprios alunos de
2a, 3a e 4a séries do Ensino Fundamental, de forma a garantir
a cada um deles a
flexibilidade de montar, a partir de um roteiro prévio e
geral, a sua própria cartilha,
com registro e análise de sua realidade social, que, apesar
de coletiva, tem aspectos
peculiares, estritamente individuais. Assim, ao final de
cada ano, todo aluno dessas
séries terá concluído o seu próprio Caderno de Estudos
Sociais.
Grupo de estudos
As supervisoras realizam grupos de estudos para
aprofundamento teórico,
análise dos resultados da aprendizagem dos alunos, do
material produzido por eles
e dos relatos das professoras. É tema constante de
investigação a forma pela qual
as crianças constroem seu pensamento e a noção de tempo e
espaço na realidade
onde vivem.
Um exemplo das preocupações da escola é compreender o
impacto da intensa
mobilidade das famílias e dos alunos, mudando-se de uma
fazenda para outra, do
campo para a cidade ou vice-versa, na dinâmica das famílias
e no processo de
aprendizagem das crianças. São várias as questões que devem
ser atendidas na
proposta pedagógica:
_ Em que medida este intenso processo de “desenraizamento”
das famílias
do meio rural responde pelas dificuldades de aprendizagem,
uma vez que essa
desordenada mudança de lugares se daria concomitantemente à
maturação das
funções intelectivas referentes aos raciocínios sobre tempo
e espaço?
_ Em que medida as características próprias de percepção e
mensuração de
tempo e espaço ditos “rurais” se distinguem dos “urbanos”?
Como essas
diferenças incidem sobre os processos de cognição que vivem
a mudança de um
lugar “rural” para um lugar “urbano” ou o movimento no
sentido inverso?
_ Em que medida as constantes mudanças, o “desenraizamento”
e a perda
do pertencimento trazem para a criança dificuldades de se
vincular, uma vez que
está vivendo perdas, aprendendo que tudo é descartável, que
nada é duradouro e
que nada lhe pertence?
UMA BIBLIOTECA COMO TODA ESCOLA
PÚBLICA DEVERIA TER
A biblioteca da Escola Estadual Fundamar, com cerca de 2.000
títulos e
5.000 volumes,mantém um banco de dados em constante
atualização, além
de livros didáticos, literatura infanto-juvenil, mapas,
vídeos, gibis e jogos.O
acervo compreende também enciclopédias, como Barsa
Multimídia 2000 e
Mirador. Na gibiteca destaca-se a clássica Tico-Tico. Para
os professores, há uma
seção sobre pedagogia. Segundo Maria Lúcia Prado Costa, essa
é uma
biblioteca interessante,“pois nós encontramos obras de Paulo
Coelho a
Shakespeare, Saramago, Florbela Espanca, até exemplares
luxuosos, como D.
Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes com ilustrações
de Gustave
Doré”.
O acervo fotográfico da escola, formado a partir de 1984, e
da
comunidade também ficam sob responsabilidade da biblioteca,
que funciona
como uma oficina. Há uma monitora em horário integral,
formada em Letras,
que além de organizar e catalogar o acervo, desenvolve temas
bimestrais com
cada turma de 1a a 4a série (D.Quixote, Lampião,Monteiro
Lobato, por
exemplo, foram temas em 2003).“Estes temas”, explica Maria
Lúcia,“são
desenvolvidos dentro da mesma pedagogia das oficinas: o que
as crianças já
sabem, o que poderão saber, desenhos, dramatizações, o que
esse tema tem a
ver conosco hoje etc.” São sessões de 50 minutos diariamente
com as turmas
da Artes e Ofícios (1a e 2a séries) e uma sessão semanal com
as turmas das
demais oficinas (Horta, Cerâmica, Fiação) de 3a e 4a séries.
As séries da Educação Infantil e do segundo ciclo do Ensino
Fundamental
têm horários próprios com os professores para pesquisa
escolar e para aulas de
Literatura.“As crianças a partir da 1a série podem levar
livros para casa,mas
nota-se um declínio no interesse pela leitura a partir da 5a
série.Os professores,
infelizmente, leem pouco; já os monitores são obrigados a
levar um pacote de
férias a cada recesso escolar”, relata a coordenadora da
Escola Fundamar.As
turmas de 1a a 4a série, tanto na sala de aula quanto na
oficina,têm um
"Cantinho de Leitura",montado com livros doados
pela Secretaria de Educação
de Minas Gerais.Esses Cantinhos são alternados em rodízio,
conforme o perfil da
turma.
Além dessas atividades rotineiras, há um acervo circulante,
composto por
obras mais populares (puericultura, receitas de culinária,
palavras cruzadas,
livros de bolso, textos religiosos), que são oferecidos à
comunidade em todos
os eventos da Escola: reuniões de pais, encontros da
Pastoral da Criança ou
cursos oferecidos na comunidade.A biblioteca também é
responsável pelo
mural de notícias de jornais e notícias produzidas pelo
pessoal da escola, e
toda quarta-feira promove uma exposição de livros no
refeitório,
normalmente alusivos a um tema para atrair a atenção das
crianças.
Oficinas, um espaço de inclusão
Além das quatro horas do ensino formal, o projeto pedagógico
da Escola
Estadual Fundamar inclui quatro horas diárias de oficinas.
São aulas de fiação,
tecelagem, bordado, tricô, cerâmica, palha e cestaria,
horta,marcenaria, música,
leitura, recreação dirigida e informática. Longe de ser uma
mera ocupação de tempo,
as oficinas exercem um papel valioso na relação da criança
com a escola e sua
aprendizagem.
“Se não houvesse as oficinas, 30% das crianças não se
manteriam na escola”,
estima Maria Lúcia Prado Costa, coordenadora das oficinas.
Independentemente da
atividade, são um importante espaço da inclusão.“É que nas
oficinas mesmo as
crianças com dificuldade na escola formal podem ser
brilhantes. Nesse momento,
elas recuperam a auto-estima e confiança em si mesmas e
passam a ter um lugar no
seu grupo, como alguém que tem valor, tem o que dar. É comum
que crianças
inseguras ou agressivas assumam novas posturas. Parece que
estão procurando
identificar no que são boas. E, quando encontram suas
competências,melhoram
inclusive nas aulas”, analisa a coordenadora.
Os educadores das oficinas consideram-se privilegiados por
poderem estar mais
livres para se aproximar das crianças. Segundo a responsável
pela oficina de
cerâmica,Maria das Dores Brito,“as crianças sentem-se à
vontade para falarem de
todos os assuntos que quiserem. É uma oportunidade para
aprenderem umas com as
outras, trocarem ideias e discutirem temas do seu interesse.
As crianças conversam o
tempo todo. Parece que, se param de conversar, param também
de produzir”.
Por outro lado, as oficinas revelam-se um espaço
privilegiado para as educadoras
se vincularem com as crianças e perceberem novas demandas e
problemas, como
violência doméstica, depressão ou tristeza.
Conteúdos e habilidades
As oficinas geralmente trabalham em torno de um tema comum,
tais como as
comunidades indígenas de Minas Gerais, o Programa Fome Zero
do governo federal
ou a gravidez na adolescência. Em 2003, a vida e obra do
pintor Cândido Portinari
foi um dos temas que mais apaixonou as crianças e
educadores, contagiando
inclusive as famílias dos alunos (leia mais nesta página.)
Às vezes, é o educador que estuda o tema e adapta para as
oficinas. Outros são
pesquisados junto com as crianças. Elas percebem que nem
mesmo os adultos
sabem tudo, que todos estão aprendendo e que existem formas
de pesquisar para
saber mais.
AS CORES DE CANDINHO
Em 2003, o centenário do nascimento do pintor Cândido
Portinari – ou
Candinho, como ficou conhecido entre as crianças –
movimentou as oficinas da
escola, despertando os alunos para o universo de cores,
personagens e cenas de
um dos maiores artistas brasileiros.Atraídos pela forte
identidade caipira de
sua obra e história de vida, os educadores transformaram os
quadros de
Portinari em uma nova possibilidade de valorizar e ampliar a
percepção dos
alunos sobre a beleza e aspereza do mundo caipira.
O pontapé inicial foi o acesso a diferentes fontes de
informação sobre o
pintor, com destaque para um CD-ROM cedido pelo Projeto
Portinari e o livro
Crianças famosas: Portinari, de Nadine Trzmielina e Angelo
Bonito.A partir daí,
as turmas pesquisaram a vida e o trabalho do artista,
deparando-se com cenas
familiares, como os trabalhadores com os pés deformados nas
lavouras do
café, as brincadeiras das crianças descalças, o casamento
caipira, o espantalho,
a religiosidade popular... Revivendo cada tema, as crianças
produziram seus
próprios textos, desenhos e esculturas, trazendo para dentro
da escola e das
suas casas o encanto da arte.
Ao trabalhar um tema específico, os alunos lidam com
conteúdos ligados às
mais variadas matérias. Fazer contas, decifrar códigos ou
avaliar custos e
desperdícios são constantes lições de Matemática. História e
Geografia aparecem
na busca da origem e contexto das atividades. As aulas de
costura, bordado ou
tapeçaria, por sua vez, exigem atenção aos detalhes, leitura
de legendas complexas
ou contagem de pontos.
Várias habilidades são desenvolvidas no decorrer das
oficinas – da criatividade
à concentração, passando pelo domínio corporal e motor. Após
participarem de
algumas oficinas, as crianças ficam mais centradas,menos
dispersas. Quem está
em ritmo muito lento é chamado para ação, e quem está
agitado se acalma.Muitas
vezes a turma fica tão envolvida nas oficinas que não quer
sair para a recreação. O
interesse das crianças é a condição essencial para o
desenvolvimento da oficina.
“Se não estão interessadas, temos que mudar a abordagem.
Esse é o nosso desafio:
manter a criança sempre entusiasmada”, resume uma das
educadoras.
Sustentabilidade
Cada oficina tem o desafio de se sustentar, comprando seu
próprio material
com a venda de seus produtos. As crianças discutem a gestão
da oficina, o custo
das matérias-primas, a quantidade da produção, o transporte,
o desperdício do
material, entre outros assuntos. Na horta, por exemplo,
foram discutidas as opções
em se trabalhar com bambu até decidirem pela fabricação de
instrumentos.
Todas as oficinas procuram aproveitar material reciclado.
Papéis de presente,
rolhas,materiais de construção, tudo pode ser reutilizado.
Com eles, são inventados
objetos úteis para vender ou dar de presente nas festas
comemorativas, como dia
das Mães ou dos Pais.
7. A
relação com a família
Em seu projeto pedagógico, a Escola Estadual Fundamar assume
uma relação
de parceira com a família, sem se sobrepor a ela ou
substituir papéis e funções. Logo
na matrícula, no mês de janeiro, a família recebe uma visita
domiciliar dos
assistentes sociais. Já na primeira conversa, a equipe tenta
conhecer a família,
observar suas características e necessidades. Essas
informações serão levadas em
conta no projeto pedagógico da instituição.
A família logo percebe a postura cuidadosa da equipe. Quando
a criança
pertence à turma da Educação Infantil, por exemplo, é
entregue na matrícula um
crachá com nome da criança, do acompanhante, do horário do
ônibus e local de
descida.
A cada ano, a visita dos assistentes é repetida,
reafirmando-se os laços entre a
escola e a comunidade. A equipe registra as mudanças de
endereço, de trabalho e
da própria composição familiar. Acompanhar esse movimento é
uma tarefa
essencial para a renovação pedagógica da escola.
No decorrer de todo o ano letivo, essa relação continua
sendo alimentada. Nas
investigações realizadas pelas crianças e professores, por
exemplo, a família sempre
aparece como personagem importante. O interesse em conhecer
e pesquisar a
população que vive na zona rural implica em entrevistas com
as mães, pais e avós,
coletando informações sobre sua origem, realizações, crenças
e sonhos.
A família também se faz presente nas reuniões semestrais.
Cada ciclo tem sua
própria reunião – uma para a Educação Infantil, outra para
as primeiras séries do
Ensino Fundamental e mais uma para as últimas séries. A escola
recebe os adultos,
e a presença de cada um é considerada essencial. Até mesmo o
transporte para as
reuniões é garantido pelos ônibus escolares. E mesmo os
homens não deixam de
comparecer. A presença dos pais e mães é de 100%, segundo os
professores.
O objetivo é aproximar pais e mães da prática pedagógica,
sendo escolhido um
tema geral para cada reunião. Este tema é explorado e
aprofundado pelos
professores e alunos com o envolvimento das famílias e
depois é apresentado e
debatido com os pais. No segundo semestre de 2003, por
exemplo, o tema tratado
pela 4a série foi o do trabalho infantil. Além de pesquisar
o assunto em livros e
revistas, as crianças foram perguntar para seus pais como
era essa realidade na
época da sua infância. Junto com os professores, elaboraram
uma opinião e
apresentaram o resultado para as famílias.
Durante a visita, os professores apresentam para os pais o
programa do curso, e
as crianças, suas produções. Leem e explicam o que fizeram
aos adultos. Os
educadores ressaltam o interesse dos pais pela aprendizagem
da criança.Muitos
deles não sabem ler, nem têm os conhecimentos conquistados
pelos meninos. As
reuniões também são transformadas em uma ocasião de
integração entre as
diferentes famílias. Organiza-se uma feirinha, em que cada
pai ou mãe pode vender
o seu produto, trocando dicas e informações.
O que dizem os pais
Os pais parecem valorizar especialmente a chance de seus
filhos terem um
maior conhecimento sobre as coisas. Percebem que são saberes
valiosos até
mesmo para o trabalho na roça, e demonstram querer para os
filhos a escola que
não tiveram, vendo nela a oportunidade de um futuro melhor.
O que dizem as mães
Para as mães, a escola representa, acima de tudo, proteção.
Enquanto
trabalham, a escola proporciona o cuidado e a atenção
necessários para seus
filhos. Se há algum problema de saúde, não precisam se
preocupar: quando
chegam, os primeiros atendimentos já foram feitos.
Em geral, as mães gostam muito da escola, considerada
“grande e bonita”, com
espaço suficiente para seus filhos correrem e brincarem.
Acham os educadores
acolhedores e carinhosos.Também ficam felizes porque as
crianças gostam de ir
para a escola. Faça chuva ou sol, não faltam e muitas não
entendem por que têm
que ficar em casa no fim de semana. As mães acreditam que,
ao estudar, as
crianças ficam mais criativas e sabidas, e até os próprios
adultos acabam
aprendendo com os filhos.
8. Rede de apoio
A proteção integral da criança orienta o projeto pedagógico
da Escola Estadual
Fundamar para além da sala de aula. Consagrado no Estatuto
da Criança e
Adolescente (ECA), o princípio da proteção integral
estabelece a necessidade de
assegurar direitos da criança e de sua família visando ao
seu pleno
desenvolvimento. Afinal, sem saúde,moradia ou alimentação, o
próprio direito à
educação não se concretiza inteiramente.
Para efetivar esse atendimento, a Fundamar busca agregar e
articular esforços
com outras iniciativas governamentais e não-governamentais
para criar uma rede
de cidadania.
Parceria com o governo estadual
Um convênio com a Secretaria de Estado de Educação de Minas
Gerais garante
o atendimento escolar da Educação Infantil ao Ensino
Fundamental, além das
oficinas artísticas e a merenda escolar.
Parceria com o governo municipal
Prefeitura de Paraguaçu concede um ônibus para transporte
dos professores e
a Prefeitura de Machado deu R$10.000,00 para transporte em
2003. O resto das
despesas com transporte, como aquisição dos
veículos,manutenção, seguro e
combustível, é arcado pela Fundação 18 de Março. Ainda em
parceria com esses
municípios, a escola manteve atendimento médico e
odontológico durante alguns
anos em suas instalações. Atualmente, por não haver
profissionais disponíveis,
encaminha as crianças com problemas para a rede de saúde de
ambas as cidades
ou, havendo necessidade, para o hospital universitário da
Unifenas, na cidade
vizinha de Alfenas.
Parceria com o governo federal
A escola participa do Projeto Bolsa-Escola, do Governo
Federal, que proporciona
uma renda mínima para as famílias em situação de maior
pobreza, com filhos
matriculados na escola.
Parceria com a Pastoral da Criança
Equipes da Pastoral da Criança atenderam 542 crianças em
2003, na faixa de
zero a seis anos em 11 comunidades rurais e urbanas. A
equipe acompanha o peso
e desenvolvimento dos meninos e meninas, orientando as
famílias sobre
amamentação, uso do soro caseiro e alimentação. A
supervisora da Educação
Infantil da Fundamar, Cibele Ercílio Pinto Costa, é a
coordenadora da Pastoral da
Criança em Paraguaçu.
Parceria com a rádio local
Por uma articulação da Pastoral da Criança, a escola tem voz
garantida na
programação da rádio de Paraguaçu.Todo sábado, ao meio-dia,
ela veicula
campanhas preventivas, orientações de saúde, bem como as
notícias e
reivindicações da escola e das comunidades que ela atende.
Parcerias profissionalizantes
Visando à continuidade dos estudos dos seus alunos, a
Fundamar buscou
firmar parceria com instituições de ensino
profissionalizante, como a Escola
Agrotécnica Federal de Machado. Além de oferecer vagas no
Ensino Médio, a Escola
Agrotécnica promove cursos profissionalizantes e de
Informática.
Mutirão ecológico
Com a participação de toda a equipe pedagógica, a escola
desenvolve projetos
ambientais, incluindo campanhas de vacinação de animais
domésticos, coleta
seletiva de lixo em determinados bairros, limpeza de áreas
públicas, entre outras
ações.
TRANSPORTE: SEM ELE, NÃO HÁ ESCOLA
No mundo rural, o ir e voltar da escola é uma questão
crucial que, muitas
vezes, impede o direito à educação das crianças. Sem opção
de transporte,
meninos e meninas se arriscam andando a pé pelas estradas
até a escola mais
próxima – geralmente na cidade.Muitos acabam desistindo e
adiam o sonho de
estudar.
Desde o início, a Fundamar decidiu enfrentar essa
dificuldade, buscando
parcerias com as prefeituras dos municípios vizinhos.
Conseguiu organizar um
sistema de transporte gratuito e eficiente, com horários
conhecidos por todos.No
total, cinco ônibus transportam diariamente as crianças, os
educadores e os
funcionários, como também as famílias em dias de reunião ou
festa. Um dos
ônibus pertence à Prefeitura de Paraguaçu, e os outros
quatro, à Fundação 18 de
Março.
Os ônibus aparecem pontualmente no local combinado,
recebendo a
confiança da família.No papel de educadores, o motorista e
seu acompanhante
fazem o elo cotidiano entre as famílias e a escola. Ouvem as
preocupações,
recebem recados e recomendações. Para subir no veículo, ou
descer dele, as
crianças contam com o cuidado dos irmãos mais velhos e
adultos presentes.Nem
todos os pais conseguem acompanhar os filhos,mas têm a
certeza do apoio do
grupo.Ao chegar, crianças e professores andam em pequenos
grupos para as suas
casas.
Como uma extensão da escola, o ônibus favorece um espírito
de respeito e
apoio mútuo. O ir e vir torna-se uma oportunidade pedagógica
de estimular a
autonomia e a responsabilidade das crianças.
A EDUCAÇÃO INFANTIL
Desde os primeiros anos, a Escola Estadual Fundamar foi
pioneira na região ao
garantir o direito à Educação Infantil para as crianças das famílias
do campo. Essa
conquista representa grande impacto não só na vida da
criança,mas de toda sua
família. Com a tranquilidade de ver seus filhos pequenos
cuidados pela escola, as
mulheres podem buscar alternativas de renda e trabalho,
conquistando autonomia,
auto-estima e um novo espaço social. Ao mesmo tempo, é
ampliada a rede de
proteção à criança, prevenindo inclusive o trabalho
infantil. Em vez de acompanhar
suas mães até a roça, as crianças percebem desde cedo que
seu lugar é na escola.
Por outro lado, a existência de vagas na Educação Infantil
garante que os filhos
mais velhos continuem seus estudos, sem ter que substituir
os adultos no cuidado
dos irmãos ou no sustento da casa.
Segundo as concepções educacionais mais recentes, ao
participar de uma
escola de Educação Infantil de qualidade, a criança torna-se
mais sociável,
autônoma, adquirindo novo vocabulário, conhecimentos e
habilidades para
vivências futuras. Na Fundamar, os educadores não hesitam em
destacar esses
ganhos nas crianças. Em contato com um ambiente
alfabetizador, que não é
comum na zona rural, as crianças são estimuladas por novas
experiências,
apresentam melhor desenvolvimento sensorial, motor,
simbólico, afetivo e social.
A criança encontra na escola um espaço de convivência e descobertas,
pleno
de afeto, cuidado e estímulo. Pode ir e ficar junto com seus
irmãos, além de conviver
com outras crianças de diversas idades.“A criança do campo
quando não vai à
escola”, relata uma das educadoras,“fica isolada, só com a
mãe, num universo
social e cultural mais limitado e pobre. Na escola, a
criança pode se relacionar e
conciliar natureza e cultura, horta e computador, internet e
fogão a lenha. Desde
cedo, aprende a se expressar pelas palavras, desenhos, sons
e jogos de faz-de-conta.
É provocada a pensar e fazer.”
LINHA DO TEMPO: A EDUCAÇÃO INFANTIL NA ESCOLA ESTADUAL FUNDAMAR
1984 - Desde a criação da Escola Estadual Fundamar, a
comunidade local
apresentou a demanda por um atendimento às crianças
pequenas. Já na
primeira sala multisseriada faziam parte da turma crianças
de seis
anos entre as maiores.
1985 - Com a criação de salas separadas por idade, forma-se
uma turma para
crianças entre quatro e seis anos de idade.
1986 - Chegam à escola meninos e meninas entre um ano e meio e
três anos.A
partir daí, são criadas salas, rotinas e equipes para
atender ao grupo. O
atendimento é custeado pela Secretaria de Estado da Educação
de
Minas Gerais.
1988 - A
Constituição Federal reconhece a Educação Infantil como direito das
crianças brasileiras.
Anos 90 - A população matriculada na Escola Estadual Fundamar
varia ano a ano, chegando a formar duas turmas de cinco anos
e
duas de seis, somente com crianças da zona rural.
1996 - A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece a Educação
Infantil como parte da educação básica.
1997 - Entra em vigor a política de municipalização do
atendimento de
Educação Infantil. Diante da dificuldade das prefeituras
locais, o governo
estadual mantém seu apoio ao projeto da Escola Estadual
Fundamar.
1999 - Ano marcado por uma retração das matrículas. Por falta
de trabalho,
muitas famílias rurais se dirigem para as periferias das
cidades,
especialmente Paraguaçu. A escola decide expandir sua
matrícula para
as crianças da periferia da cidade.
2002 - O projeto de Educação Infantil da Fundamar recebe o
Prêmio Criança,
concedido pela Fundação Abrinq.
2003 - Assim como os demais ciclos da escola, a Educação
Infantil atende 70%
de crianças residentes na zona rural e 30% na periferia
urbana.
1. Proposta pedagógica
Desde sua criação, o atendimento da Educação Infantil foi
mudando de espaço.
Atualmente a creche está situada numa antiga casa de colono
com uma sala
ampla e um banheiro aquecido por energia solar. Os
educadores e coordenadores
pleiteiam a construção, no futuro, de um lugar mais amplo e,
portanto,mais
adequado para o projeto proposto.
Do ponto de vista pedagógico, a Educação Infantil viveu
muitas mudanças de
supervisão tanto pela Fundação 18 de Março quanto pela
Secretaria de Educação
de Minas Gerais. A proposta atual apoia-se nas concepções do
próprio coletivo
formado pelos educadores e a supervisora. A partir de suas
observações e
conhecimentos, o corpo docente constrói teorias e práticas
pedagógicas
sintonizadas com as demandas e propósitos desejados.
O trabalho parte de concepções de infância, criança e
educação bem definidas,
conforme apresentadas a seguir.
Concepção de infância
“Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser
crianças”, diz o
escritor uruguaio Eduardo Galeano. Essa ideia inspira os
educadores da Fundamar,
que reconhecem a infância como um período fundamental da
vida que deve ser
vivido em sua plenitude, preservado e lembrado. Na infância,
a criança deve viver
como criança, respeitando suas possibilidades de
desenvolvimento. Deve se
preservar o colo, o aconchego, a história e o sonho.
Inclusive na escola, a infância
deve ser vivida dessa forma, precisando encontrar no
dia-a-dia escolar espaço para
ser criança. Ela precisa conviver com outras crianças, fazer
amigos, ter colo e afeto
quando precisar, poder se entregar às descobertas de um
mundo cheio de
surpresas e aventuras divertidas,mágicas.
O brincar é percebido como estratégia de desenvolvimento e
não como perda
de tempo ou mera distração. Os educadores defendem lugar
garantido para os
brinquedos da tradição local (bilboquê, bonecas de espiga de
milho, papagaio,
cantigas de roda etc.), assim como para as novidades de cada
tempo.“Mais do que
comprar, devemos incentivar o criar”, sintetiza uma das
professoras deste ciclo.
Concepção de criança
A criança é vista como sujeito de direitos, com identidade
própria. Ao chegar à
escola, ela traz consigo uma cultura familiar a ser
respeitada. Espera-se que possa
criar o mundo a partir de sua perspectiva, ser ouvida para
ter a possibilidade de
produzir novas construções e, se for o caso, virar pelo
avesso a ordem das coisas. O
centro dessa reflexão é entender cada criança como única.
Na fala da equipe, a criança sempre aparece como
protagonista, cheia de vida,
sempre em ação e movimento. No seu processo de aprendizagem,
busca-se
estimular sua curiosidade e interesse pelo mundo. Assim ela
própria pode ampliar
suas referências, construir e desconstruir a realidade,
criando novas histórias.
EDUCAÇÃO INFANTIL EM 2003
Turma/classe
|
Número de professoras*
|
Número de crianças
|
Turma de 18 meses a três anos
|
02
|
30
|
Turma de quatro anos
|
02
|
30
|
Turma de cinco anos
|
02
|
30
|
Turma de seis anos
|
02
|
20
|
TOTAL
|
08
|
110
|
Concepção de Educação Infantil
Para os educadores da Fundamar, a Educação Infantil deve
permitir e estimular
que a criança seja ela mesma e não precise ser adulto antes
do tempo. Deve
encontrar a oportunidade de movimento e crescimento,
sentindo-se à vontade para
descobrir o mundo e arquitetar seu próprio espaço. Deve se
sentir segura para agir,
ter iniciativa e se desenvolver. E, especialmente, deve ter
acesso ao mundo dos
saberes e brincadeiras.
A ludicidade tem papel central na pedagogia da escola. Os
primeiros anos da
vida escolar devem se transformar numa oportunidade de
aprender e se divertir com
as brincadeiras e também de descobrir o acervo cultural das
letras, música ou artes
plásticas. Deve ser um espaço coletivo, onde as
individualidades possam brotar e se
desenvolver. É um espaço de interação com as outras crianças
e adultos.
A criança, segundo os educadores da Fundamar
Concepção construída durante o processo de sistematização.
Criança é especial, carinhosa, meiga, amiga, ativa, alegre,
arteira, esperta. Simples.
Criança gosta de ser livre, sorrir, cantar, dançar... de
estar em movimento o tempo todo; de expressar o que gosta e o
que não gosta; de expressar o que faz em casa; de ser
tratada como criança; de ser tratada com dedicação e respeito.
Criança está aberta para o novo, motivada e interessada em
aprender; disposta a criar, usar a imaginação, soltar o
lado artístico.
Criança sente prazer em vir para a escola.
2. Valores do cotidiano
O cotidiano da Educação Infantil na Escola Estadual Fundamar
persegue
valores claros, zelando por práticas consideradas
essenciais:
Equilíbrio da rotina
Para os educadores, a rotina é um elemento fundamental no
cotidiano da
criança. É a organização básica dos horários do dia que faz
com que a turma se
oriente sobre o que vai acontecer, o que vem depois, qual a
hora de brincar, comer,
ouvir histórias, ir ao parque, conversar, dormir e voltar
para casa. Assim, ela vai se
organizando no tempo, percebendo continuidade e sequência
nos acontecimentos,
antecipando situações.
A rotina garante o que é fixo, dando a segurança do
conhecido.Mas, ao mesmo
tempo, segundo os educadores, é fundamental acolher as novas
necessidades das
crianças. O que elas trazem a cada dia pode – e deve –
promover mudanças na
estabilidade. O educador, portanto, precisa saber lidar com
as mudanças, tanto as
anunciadas, como as inesperadas.
Ritmo e dinamismo
Diante da pouca capacidade de permanência da criança numa
mesma
atividade e lugar, os educadores estão sempre prontos para
mudar e acompanhar o
ritmo das crianças. O contar história vira desenhar, que
vira dramatizar, que vira
reescrever a história. A maleabilidade das atividades não
significa, entretanto, que
cada uma delas não tenha começo,meio e fim.
Espaço para movimento
O movimento faz parte do jeito de ser e estar das crianças.
Assim, os
educadores buscam conduzir as atividades, permitindo que a
turma se movimente
enquanto produz. Elas levantam,mostram o que estão fazendo,
sentam,
gesticulam... De qualquer maneira, não é um movimento sem
limites. Estabelecer
essas regras é um desafio árduo e constante para a equipe.
Importância do falar
O silêncio não é imposto como regra absoluta e constante
para a turma.
Certamente, há momentos em que não se deve falar para poder
escutar. Mas, de
forma geral, as crianças são estimuladas a compartilhar suas
opiniões com os
colegas, contar o que estão fazendo, o que descobriram e
estão sentindo.
Afeto e acolhida
É notório o clima de cooperação existente entre os adultos.
Os professores
dizem se sentir apoiados, uns aos outros e também pela
supervisora. Com a autoconfiança
fortalecida, sua atuação se potencializa.
Da mesma forma, todos apoiam as crianças em atitudes
constantes de respeito
e consideração: se prontificam a ouvi-las e compreendê-las
nas suas necessidades.
“A escola é das crianças”, dizem os educadores. Elas trazem
características culturais
e jeitos de ser individuais que devem ser respeitados. O
apoio afetivo funciona como
alicerce fundamental para outras aprendizagens.
Responsabilidade e autonomia
São dois valores cultivados constantemente pelos educadores.
As crianças são
solicitadas a levar mensagens, buscar material, circular
pela área da escola para
saber se orientar e movimentar sozinhas. Desde cedo, também
aprendem a se
vestir, comer, cuidar da própria higiene e do material
escolar.
Roda de conversa
Talvez o momento mais importante do dia, segundo os
professores, é a roda de
conversa com as crianças, que acontece pelo menos duas vezes
por dia – uma de
manhã e outra à tarde. Juntos, conferem a turma, percebem
quem está presente,
quem faltou, combinam o que vão fazer.Também relatam
situações de suas casas,
discutem ideias, resolvem conflitos, cantam, brincam, ouvem
histórias. É o momento
da construção de pertencimento ao grupo.Todos têm espaço
para falar e ouvir,
favorecendo a troca.
Brincadeira livre
A escola respeita a necessidade diária de as crianças
brincarem livremente.
Nessa hora, os professores podem observar as escolhas de
cada um, os grupos que
se formam espontaneamente, além das preocupações, interesses
e conflitos
presentes.
Contando histórias
Outro momento que merece atenção dos educadores é o da roda
de histórias. A
leitura de diferentes narrativas amplia o repertório da
turma trazendo novos
contextos, sentimentos e situações a serem imaginadas e
resolvidas. Algumas
causam tal identificação – como a História dos sete
cabritinhos, dos Irmãos Grimm
– que as crianças não cansam de ouvir e sempre pedem para
que seja repetida.
Muitas são incorporadas na vida real, inspirando brincadeiras,
desenhos e
conversas. Na avaliação dos educadores, o ler e ouvir
histórias revela-se uma
maneira eficiente de desenvolver a atenção coletiva e a
criatividade.
Leitura e escrita
A Fundamar não tem como objetivo alfabetizar as crianças na
Educação
Infantil. Mas tem a preocupação de atraí-las para o mundo da
leitura e da escrita,
que raramente faz parte da vida familiar.
Diariamente, as crianças têm contato, das mais variadas
formas, com as letras e
os números.Todos os objetos da sala, por exemplo, são
identificados. Os nomes das
crianças também são escritos e reconhecidos. Bilhetes
circulam entre as diferentes
classes e setores da escola, bem como entre os professores e
as famílias.Todos são
lidos para as crianças. O calendário, o relógio, o cardápio,
cada detalhe se
transforma em oportunidade de aprendizagem.
Tampinhas, palitos, bolas ou cobras de massinha são usadas
para contar, criar
categorias e organizar. Baralhos, dominós, bingos são
brincadeiras que despertam o
raciocínio, a compreensão e o respeito de regras. Saber
“quantos somos”, quem veio
e quem faltou também é outro jogo diário. Os problemas
encontrados nas histórias
são propostos para as crianças, que se sentem instigadas a
buscar respostas.
Valor do erro
Os educadores entendem o erro como uma hipótese que não deu
certo. O
caminho deve ser, então, reconstruído. É permitido errar e
refazer, sem sentimento
de fracasso. Da mesma forma, se a criança quebra algum
objeto ou deixa algo cair,
não vai receber necessariamente uma bronca ou castigo. É um
acidente, que deve
ser evitado, exigindo mais atenção e cuidado.Mas é algo que
acontece e o mundo
não precisa vir abaixo.
3. Novos desafios
Ao refletir sobre as necessidades percebidas entre as
crianças, os educadores
da Escola Estadual Fundamar apontam desafios que devem
nortear novas soluções
pedagógicas:
Fortalecimento familiar
Muitas crianças vivem em casa situações de conflito, que se
refletem
diretamente no seu desenvolvimento, como a separação dos
pais, o alcoolismo, a
violência ou a falta de acolhimento afetivo. O educador
precisa aprender a lidar e
superar sua sensação de impotência. Ao mesmo tempo, é
essencial fortalecer a
relação com as famílias para prevenir e buscar
encaminhamentos para os problemas
apresentados.
Comunicação regular
Os educadores estão buscando alternativas para intensificar
a comunicação
cotidiana com as mães e os pais. Diferentemente de outras
unidades de ensino da
região urbana, na Fundamar os familiares não vão diariamente
à escola levar e
trazer os seus filhos. Ao mesmo tempo, muitos têm
dificuldade de leitura,
complicando a compreensão e a troca de bilhetes e recados.
Acolhimento inicial
A chegada das crianças pequenas no início do ano merece uma
atenção
especial. Afinal são muitas mudanças: separar-se dos pais,
passar o dia todo longe
do convívio familiar, adaptar-se aos novos espaços, rotinas
e relações. O período de
adaptação é difícil, inclusive para os próprios adultos da
família.
Adaptação às regras
A compreensão e aceitação das regras da escola, da turma e
dos adultos não
são imediatas. Os educadores precisam reconhecer a
capacidade e a dificuldade
próprias de cada faixa etária.Torna-se essencial redobrar a
paciência e a
flexibilidade para combinar, repetir e legitimar as regras
junto às crianças.
FUTURO DA CRIANÇA NO CAMPO
Apesar do compromisso em construir uma proposta pedagógica
diferenciada e
garantir a proteção integral à criança, os educadores da
Escola Estadual Fundamar
demonstram grande angústia ao pensar sobre o futuro da
criança do campo.
Sentem incerteza e impotência.“O futuro da criança do campo
está muito vinculado
ao futuro do campo”, aponta Maria Lúcia Prado Costa.“Se o
campo começar a
oferecer condições para que as pessoas possam trabalhar,
criar os filhos e ter
sonhos, acredito que há como se pensar num futuro. É
necessário desenvolver
outras formas de geração de renda menos agressivas e hostis
com as pessoas e a
natureza. Só então será possível conciliar o fogão a lenha
com a internet, o adubo
orgânico com o lucro da safra. Caso contrário, o futuro da
família do campo será
sair dele e tentar se adaptar ao mundo urbano.”
Os educadores reconhecem que a discussão é complexa. O
objetivo inicial da
Fundamar era fixar o homem no campo. Hoje já não acreditam
que isso vá se
realizar, embora esperem que o jovem do campo encontre seu
espaço, podendo ser
protagonista de sua história.Mas sabem que muitos ficarão no
meio do caminho,
nem cá, nem lá. Não voltarão para a roça, não retomarão a
cultura caipira e a
rusticidade do campo, nem irão para as cidades com um
desenvolvimento cognitivo
mais elaborado. Com um pé em cada lugar, tentarão se
equilibrar entre dois
universos bem distintos.
Até pouco tempo, a maior parte dos alunos que saía da
Fundamar, ao
completar a 8a série, não continuava os estudos. Além da
dificuldade do transporte
até a escola na cidade,muitos começavam a trabalhar, ficando
sem tempo para
estudar. Nos últimos anos, entretanto, a situação mudou
muito. Dos 52 alunos que
se formaram em 2002 no Ensino Fundamental, por exemplo,
apenas seis não
ingressaram no Ensino Médio, clara demonstração de que a
maioria já percebe que
é desejável continuar os estudos, mostrando maior segurança,
auto-estima e
preparo para encarar as exigências do segundo grau.Mas não
há certeza de que
conseguirão ir até o fim. Entre outros problemas, os livros
são caros e o transporte
ainda é um desafio. Ao mesmo tempo, permanece uma
expectativa familiar e social
de que os meninos, após o Ensino Fundamental, comecem a
trabalhar na roça e as
meninas, em casa.
O que a escola está fazendo
Os educadores acreditam que a escola contribua de alguma
forma no
enfrentamento dos conflitos e dificuldades das famílias que
vivem no campo. A
primeira estratégia é trazer a discussão para dentro da sala
de aula, fortalecendo a
reflexão dos alunos sobre sua condição, procurando dar voz
para que as crianças e
os jovens falem de si, da relação das pessoas do campo com o
trabalho, da violência
em casa e de tudo que os afete.
A escola afirma-se, assim, como um espaço de reflexão e
troca onde as crianças
podem saber que as coisas têm uma causa, não acontecem só
com eles e estão
relacionadas a processos políticos, econômicos e sociais
mais amplos. Além de gerar
reflexão, a escola busca oferecer aos alunos estratégias
para descobrir e entender
melhor a si próprios e aos outros; fortalecer-se afetiva e
intelectualmente; desenvolver
variadas formas de expressão; e sempre pautar-se em
princípios éticos, aprendendo a
pensar, tomar posição e fazer escolhas pensando em si e na
coletividade.
Alerta aos crescentes desafios, a Fundamar tem renovado e
ampliado suas
propostas pedagógicas. Ao mesmo tempo que as crianças têm
contato com a horta,
aprendem a lidar com o computador. Paralelamente, a escola
tem oferecido vários
cursos pontuais, como eletricidade, horta orgânica, manicure
ou alimentação
alternativa, sem esquecer o incentivo constante à
continuidade dos estudos.
O que mais a escola pode fazer
Os educadores sentem a necessidade de ter mais tempo para
ouvir e estar com
as crianças e jovens. Precisam se desdobrar para garantir as
condições básicas do
atendimento, que deviam estar asseguradas pelas políticas
públicas,mas raramente
estão. Faltam o médico, o dentista, o material escolar, o
transporte... Por outro lado,
as solicitações administrativas e burocráticas do dia-a-dia
roubam mais tempo do
que seria desejável.
Mas há um lado positivo nesse esforço. É importante que
meninos e meninas
acompanhem as lutas do grupo para alcançar o que é direito
deles.Talvez esta seja a
melhor aprendizagem que uma escola possa dar a seus alunos:
a consciência e a
conquista dos próprios direitos. É essa força de
articulação, dizem os educadores, que vai
fazer com que as comunidades rurais ou urbanas melhorem suas
condições de vida.
CONCLUSÃO
Em muitas das reflexões sobre os dilemas enfrentados na
Fundamar, questões
sobre a infância e sobre a população do campo se
entrecruzaram. Nesses
momentos os educadores se perguntavam:“Existe, atualmente na
vida moderna,
lugar para a infância?”“Qual o lugar dessa população diante
do processo da
mecanização da lavoura?” Nessas discussões, os educadores
assumem que ambos
estão perdendo, com muita rapidez, lugar no mundo moderno.
Alguns estudiosos da criança vêm denunciando o gradual
desaparecimento da
infância. A mídia, a televisão, a internet e o acesso das
crianças às informações
dirigidas ao público adulto estariam ameaçando expulsar as
crianças do jardim da
infância. Entretanto, outros pensadores ampliam esta
questão. É a infância que está
desaparecendo ou seria esta uma crise do homem
contemporâneo?
A criança está mergulhada nesse processo sociocultural,
absorvendo e sendo
formada na cultura que está ao seu redor. Deparamo-nos,
hoje, com uma cultura
marcada pela violência, com situações de ausência de
solidariedade, tráfico de
drogas, fome, falta de moradia, ausência de privacidade e
exposição de intimidade.
Esses acontecimentos estão presentes em todas as casas, na
vida das crianças e
adultos, a qualquer hora do dia, na cidade ou no campo.
Parece ser constrangedor
para o adulto lidar com o espanto da criança diante da
violência e da exposição
inadequada da intimidade, quando ela pergunta:“O que está
acontecendo? Por
quê?” Ele mesmo, assustado, não sabe responder.
Mas a qual infância exatamente nos referimos? Qual é a
infância que estaria
desaparecendo? Segundo dados do Unicef, 80% das famílias
brasileiras que
possuem crianças até seis anos ganham até dois salários
mínimos mensais. Sendo
assim, terão tido essas crianças uma infância preservada?
Teriam seus direitos
básicos reconhecidos e garantidos?
Há, portanto, uma situação mais grave e importante de ser
reconhecida. A maior
parte das crianças brasileiras nunca chegou a ter uma
infância preservada. Na zona
rural, assim como nos setores mais empobrecidos das cidades,
a situação ainda se
mostra mais aguda, e a vivência da criança pequena pode ser
bastante cruel.
Nesse contexto de privações, a Educação Infantil de
qualidade se constitui em
um projeto de proteção à infância. Na escola, além de
alimentação e de cuidados
básicos, a criança tem um atendimento apropriado às suas
necessidades, ao seu
momento de vida, tendo a oportunidade de brincar, explorar e
descobrir o mundo
físico, ter contato com livros de história e com o
faz-de-conta, construir, inventar,
imaginar, se expressar de várias formas, fazer amigos,
aprender as brincadeiras
tradicionais etc.
Entretanto, para ter um bom desempenho, a escola de Educação
Infantil precisa ter
qualidade, profissionais especializados com formação
constante, espaço físico
organizado em instalações salubres e uma proporção
educador/criança adequada
que permita a atenção individualizada necessária.
Outra preocupação dos educadores da Fundamar se refere ao
desaparecimento
da cultura do homem do campo, ao esvaziamento do
pertencimento de quem vive
da produção agropecuária. Este, para sobreviver, precisa
mudar de residência
constantemente, à procura de trabalho, ou migrar para as
cidades. Com isso, sua
sabedoria de vida está desaparecendo rapidamente.As
tentativas de trazer a
modernidade para o campo, tal como se vive no mundo urbano,
acentuaram a
descaracterização do ambiente rural, sem gerar novas
oportunidades de vida.
Segundo o sociólogo Rui d’Espiney, coordenador nacional de
projetos rurais de
Portugal, a crise no campo é estrutural e superá-la não se
dará por um retorno ao
passado nem pela reconstituição da velha ordem ou, ainda,
pela possibilidade de
anulação das causas que provocam essa crise, a começar pelo
efeito da expansão
da economia de mercado e da transformação ocorrida nas
relações de produção e
na estrutura da propriedade. É inevitável aceitar as
mudanças nos modos de vida e
nas formas de produção de riqueza, e a qualificação da
atividade agrícola (11).
Segundo discussões dos estudiosos do desenvolvimento rural,
é importante
considerar os seguintes aspectos dessa questão:
_ A necessidade de se fortalecer ou se criar uma rede
articulada e
integrada de serviços, ou seja, a integração dos serviços
que compõem a
vida comunitária (educação, economia, saúde, cultura). Essa
integração
possibilita que os atores sociais deste universo definam
caminhos que
favoreçam um reencontro com a própria identidade – ou sua
reconstrução.
_ O processo de construção do futuro no ambiente rural deve
assegurar
sua sustentabilidade, realçando o seu saber e suas
diferenças, com poder
competitivo, sem contrapartida no mundo urbano.
_ É indispensável promover qualidade de vida traduzida pela
modernidade
sem que isso se coloque em contradição com o jeito de ser do
homem do
campo. É preciso absorver o novo.
Utilizando-se da memória como forma de reconstruir as
histórias pessoais,
preservar as identidades, provocar sentimento de
pertencimento e fortalecer a
cultura local, a Escola Estadual Fundamar se apoia em
parâmetros sólidos e, até
certo ponto inovadores, sobre a aprendizagem, como:
_Os conteúdos a serem trabalhados partem da cultura e dos
saberes dos
alunos e suas famílias. Os alunos participam de um movimento
de
investigação sobre si próprios e seu contexto familiar e
espacial.
_A realidade é problematizada e o aluno usa de sua
criatividade para
buscar soluções, uma vez que não são apresentados modelos
prontos.
_Todos são aprendizes, embora com níveis de saberes
diferentes. Alunos
e professores se sentem autores da construção do seu
conhecimento,
apoiados entre si e pela supervisão.
_A escola é prazerosa, porque aprender é interessante, deve
ser fonte de
alegria, não de pressão ou castigo.
_ O processo de pensamento do aluno é objeto de estudo
coletivo dos
professores.
Assim, a Escola Estadual Fundamar traz no seu fazer
cotidiano a esperança da
solidariedade, da generosidade, da justiça social, do
reconhecimento de que as
pessoas podem, mesmo sendo diferentes e vivendo realidades
diferenciadas, buscar
juntas novas saídas para construir uma vida melhor, na
cidade ou no campo.
Em um país de grandes dimensões como o nosso, no qual os
centros urbanos
vêm sendo pressionados por um contínuo fluxo migratório
vindo da zona rural, a
oferta de uma educação pública de qualidade no campo tem
efeito e função
altamente estratégicos.Ao possibilitar à criança da zona
rural estímulos, informações
e uma aprendizagem qualificada, a Escola Estadual Fundamar
contribui, em sua
pequena escala de ação, para reverter o ciclo perverso de
exclusão e fluxo do campo
para a cidade. E ao publicar essa experiência, a Fundação
Abrinq espera contribuir
com a sua disseminação, semeando essa boa iniciativa por
outros campos.
(11) Rui D’Éspiney, Educação, desenvolvimento e cidadania: fundamentos de uma intervenção alternativa em meio rural, Portugal, 2003.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues.Pesquisa participante. São Paulo,
Brasiliense, 1990.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo,
Livraria Duas Cidades,
1987.
COSTA, Maria Lúcia Prado. Fontes para a História Social do
Sul de Minas: Os trabalhadores
de Paraguaçu e Machado (1850-1900). Belo Horizonte, Mazza,
2002.
FUNDAÇÃO 18 DE MARÇO. História pedagógica da Fazenda-Escola
Fundamar.
Paraguaçu. Dig. 1998 c/ atualizações.
Memorial das oficinas da Escola Fundamar: um projeto de
arteeducação
para alunos da roça. Paraguaçu. Dig. 1997.
Relatórios dos Cadernos de Estudos Sociais. Paraguaçu. Dig.
2003.
LABRIOLA, Isabel.“Do Analista-Caipira ao Caipira
Analista”,in XIII Moitará, República
do Pica-Pau Amarelo, arquétipos da cultura caipira, Campos
do Jordão, SBPA, 1999.
SANTOS,Milton. O espaço do cidadão. São Paulo, Studio Nobel,
2002.
As monografias e outros trabalhos sobre a Escola Estadual
Fundamar de autoria de Maria Lúcia Prado Costa podem ser encontrados no site da instituição (www.fundamar.com.br).
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